O ser humano pode ser salvo de várias maneiras. Não apenas no sentido literal. No Brasil, onde direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal são negligenciados cotidianamente, esse resgate significa muito mais do que sobreviver: é a busca constante por dignidade. Para parte da população, atingir esse objetivo é ainda mais difícil. A partir de hoje, o Correio publica a série Incansáveis — A luta das mulheres por direitos fundamentais, para mostrar as conquistas que elas alcançaram nos últimos anos e os desafios que virão pela frente.
Na primeira reportagem da série, mulheres, pesquisadoras e promotores de Justiça avaliam como a aplicação e o aprimoramento da Lei Maria da Penha têm contribuído para salvar vidas. Destacam, no entanto, ser necessário fortalecer a rede de proteção e ampliar o orçamento destinado às políticas voltadas à população feminina, assegurando o acesso a direitos essenciais e a igualdade de gênero.
Formada em administração de empresas, Ana Paula*, 46 anos, constatou na prática as mudanças provocadas pela Lei Maria da Penha. Nascida em um lar marcado pela violência, viu a reprodução do ciclo meses após se casar, aos 17 anos. “Acreditava que, como a minha mãe, eu deveria relevar, que homem é assim mesmo.”
A conversa, de mais de uma hora, é marcada por pausas intercaladas por soluços. Quando as filhas completaram 4 anos, o então companheiro ameaçou a ela e as crianças de morte. “Criei coragem para denunciá-lo. O policial perguntou se eu tinha certeza, se o meu marido não havia tropeçado em mim sem querer. Voltei para casa destruída e rezando para ele (marido) não descobrir”, conta.
As agressões continuaram, cada vez piores. Mas, em 2007, a ginecologista notou as marcas de violência e falou sobre a Lei Maria da Penha, promulgada um ano antes. “A segunda vez que ele nos ameaçou de morte, peguei os documentos, algumas peças de roupa e fui para a delegacia. Os policiais não duvidaram de mim. Consegui a medida protetiva e me mudei do DF. Se não fosse a Maria da Penha, eu não estaria viva para contar a minha história”, diz, emocionada.
A percepção da transformação proporcionada pela Lei Maria da Penha não é exagerada. Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) atribui à legislação a redução de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres dentro das residências. O estudo é de março de 2015.
Contribuições
A legislação está mudando não só a vida de mulheres vítimas de violência de gênero, mas, também, de integrantes do sistema de Justiça. “Antes dela, eu sequer sabia da palavra gênero. E não sou só eu. Outros colegas passaram a se debruçar sobre os estudos de gênero e isso fez com que nossos olhares fossem transformados”, observa a promotora Mariana Távora, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
Entre as grandes contribuições da norma, Mariana Távola destaca que a legislação mostra que a violência de gênero é uma violação aos direitos humanos e precisa de resposta do Estado no eixo da prevenção primária. “Isso passa pela promoção da igualdade de gênero, pela necessidade de trabalhar as situações de risco e de uma rede dentro da saúde, da assistência social, do Ministério Público e da Justiça, para a responsabilização do autor da violência.”
Humanidade
Apesar das conquistas, há muito o que se avançar, tanto no âmbito da Justiça, quanto em políticas públicas. O relatório O Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Ipea, concluiu que, no Brasil, o Judiciário incorporou a discussão da violência motivada por gênero, mas “ainda é preciso avançar no sentido de garantir um atendimento ao mesmo tempo tecnicamente apurado e mais humanizado, que não reproduza violências de gênero e dê respostas efetivas às expectativas de justiça das mulheres vítimas de violência”.
Este mês, um passo importante foi dado nessa direção. O CNJ aprovou uma recomendação para que magistrados e magistradas das varas especializadas sejam capacitados em direitos fundamentais com perspectiva de gênero. A conselheira Maria Cristiana Ziouva participou do grupo de trabalho que redigiu o texto e explica que o objetivo é dar um tratamento mais humano, célere e adequado às vítimas nos casos de violência contra a mulher, “assegurando dessa forma os seus direitos fundamentais e, principalmente, evitando a revitimização”.
“É muito difícil precisar quando haverá uma transformação, mas sem dúvida ela ocorrerá, pois a sociedade já reflete essa transformação. E esse ato foi editado com a esperança de que haja um maior engajamento e uma maior sensibilidade ao tema”, completa a conselheira.
* Nome fictício
Transformação em curso
Nos últimos 14 anos, jurisprudências nos tribunais têm fortalecido a legislação de proteção à mulher. Entre elas, estão o reconhecimento da violência doméstica mesmo quando agressor e vítima não vivem na mesma casa; entre namorados; mãe e filha; padrasto e enteada; irmãos; e casais homoafetivos femininos.
“De uma década para cá, saímos de um momento do século passado, em que ainda se discutia a tese da legítima defesa da honra, para, já no começo deste século não ver mais esse tipo de discussão por aqui. Não digo que não voltará acontecer, mas não tenho visto”, observa o promotor Raoni Parreira Maciel, coordenador do Núcleo do Tribunal do Júri e Defesa da Vida do MPDFT.
Baseado na experiência como integrante do Ministério Público nos julgamentos de feminicídios consumados e tentados no DF, ele avalia que a mudança é resultado do debate provocado pela lei. Como o argumento jurídico não encontra mais respaldo entre os jurados, a defesa dos réus migrou para a tese do privilégio, alegando crime passional, na tentativa de reduzir a pena. Recentemente, surgiu uma terceira tese para reduzir penas de feminicidas: a da semi-imputabilidade, ou seja, no momento do crime, o réu não era totalmente capaz de perceber o que estava fazendo.
“Toda vez que surge uma nova tese, é porque a anterior já não encontra respaldo entre os jurados”, comenta. Raoni destaca, ainda, que tem sido cada vez mais raro vítimas sobreviventes e parentes usarem o termo “ciúme”. Em vez disso, adotam as expressões “sensação de posse” ou “achava que era dono dela”.
Também tem reduzido o número de mulheres que defendem os seus algozes. “Isso nos mostra duas coisas: o vocabulário está mudando na sociedade e o Estado está conseguindo tirar essa mulher do ciclo de violência”, acredita o promotor. “Estamos num ciclo produtivo, ainda que os números sejam os de uma tragédia”, conclui.
Denúncias aumentam
Os dados mais atuais da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF) mostram redução de 46,1% no número de feminicídios e de 49,3% nas tentativas de assassinatos de mulheres pela condição de gênero entre janeiro e setembro deste ano em comparação ao mesmo período de 2019. Também houve queda de 3,6% nos registros de violência doméstica.
Apesar disso, a capital federal tem muito o que avançar. É a que mais registrou casos de violência doméstica em todo o país no ano passado, de acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na última segunda-feira, e ocupa a segunda posição em feminicídios.
Com 16.549 casos de violência doméstica registrados no ano passado, o DF ultrapassa capitais como São Paulo (11.403), Rio de Janeiro (8.966) e Belo Horizonte (7.744). Em relação aos estupros, o DF está em quinto lugar entre as capitais que mais registraram casos, foram 756. São Paulo ocupou o topo do ranking, com 2.663, seguida de Rio de Janeiro (1.726), Curitiba (904) e Manaus (855).
Ao avaliar o atual cenário, a secretária da Mulher, Ericka Filippelli, pondera que os dados do anuário tratam da realidade de 2019. Ela pondera que o DF proporciona maior acesso aos canais de denúncia, o que resulta em uma menor subnotificação.
“A questão é que, este ano, já temos a queda de mais de 40% nos índices de feminicídio. Então, isso é positivo. Revela que as políticas implementadas ao longo de 2019 começam a dar resultados. Este ano, durante a pandemia, disponibilizamos um canal de denúncia pelo WhatsApp, o teleatendimento, sem contar com a maior articulação desta política com a polícia”, destaca a secretária.
O aumento do índice de flagrantes, por sua vez, é resultado, na visão dela, de uma atenção maior dada às mulheres pelos integrantes do programa da segurança, o Provid. “Eles fazem uma abordagem local, na casa da família em situação de violência e isso tem sido muito importante.”
“É preciso que se tenha clareza que esse é um direito fundamental: de viver sem violência, em todos os sentidos”, reforça a advogada criminalista Soraia Mendes, especialista em direitos das mulheres. Ela ressalta que a violência sexual e a psicológica podem ser tão brutais quanto a física e que, aliada a uma necessária mudança social, vem a responsabilidade do sistema de justiça criminal.
“Essa violência é o que te impede de andar na rua às 10 horas da noite sem medo de ser estuprada. Ela é muito presente e nos distancia desse direito fundamental de uma vida sem violência. É o direito negado de ter acesso à cidade”, afirma Soraia, que é professora de processo penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Fonte: Correio Braziliense