O tsunami de mortos pela Covid-19 ameaça jogar regiões do Brasil em milhares de valas com corpos enterrados até em caixões de papelão, repetindo o mesmo cenário catastrófico que tomou conta do Equador no início da pandemia.
Fábricas de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pará e Ceará já acumulam, juntas, pedidos para produção de, ao menos, 100 mil caixões, com entrega prevista só para maio ou junho, segundo levantamento do Metrópoles. Os modelos são vendidos a funerárias por valores entre R$ 250 (popular) e R$ 10 mil (superluxo).
O prazo mais do que dobrou em relação ao do ano passado. Em algumas fábricas, o número de pedidos aumentou até seis vezes neste ano. À beira de um apagão na produção, essas empresas não conseguem mais atender à demanda na mesma velocidade de sepultamentos em cemitérios nas cinco regiões do país, para onde distribuem caixões.
Alerta de terror
“Nosso setor precisa estar preparado para realizar, nos próximos 90 dias, 500 mil atendimentos funerários.” O alerta é das associações Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário e de Administradores de Planos de Assistência (Abredif) e dos Fabricantes de Urnas do Brasil (Afub) – que representam 70% do mercado nacional.
Segundo as entidades, os fabricantes do país conseguem produzir, com muito esforço, até 400 mil caixões em três meses, abaixo da demanda projetada. “Teremos que usar grande parte, em alguns casos até o limite, do nosso estoque regulador”, comunicam as associações, em nota conjunta.
A velocidade de mortes está maior. Mais letal de toda a pandemia, o mês de março ultrapassou a marca de 50 mil mortos por complicações de Covid-19 em todo o país.
Onda tenebrosa
Baseadas em registros de óbitos no Brasil, as associações projetam 5.555 mortes de causas em geral, por dia, no próximo trimestre. São 1.720 óbitos diários a mais em relação a 2020, considerando o total de 1,4 milhão de pessoas que faleceram no ano passado, segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen).
No entanto, um estudo da Universidade Federal Fluminense (UFF), divulgado na última quarta-feira (24/3), mostra cenário muito pior: o país pode registrar até 5 mil mortes diárias apenas por Covid-19, entre abril e maio deste ano.
“Estamos no meio do caos”, afirma o presidente da Afub, Antônio Marinho, que é dono de fábrica de caixões em São Paulo. “A gente tem capacidade produtiva acima do normal. Vamos ter de aumentar hora extra e turno [de trabalho], mas o que preocupa agora é restrição de matéria-prima”, destaca.
No ano passado, a indústria de Marinho entregava, em média, 12 mil urnas por mês. “A gente foi para 15 mil este mês”, afirma. Ele afirma que a empresa tem na fila outros 42 mil caixões para entrega em maio. “Mas todo pedido que entra hoje está previsto para ser entregue a partir de junho. Qualquer empresa teve ao menos 50% de produção aumentada. Outras grandes estão na mesma situação que nós”, conta.
Avalanche de mortos
Com a avalanche de mortes impulsionadas pela Covid, mais caixões devem estar disponíveis para famílias sepultarem seus entes queridos. As fábricas, porém, estão fazendo malabarismo na produção e nas contas para tentarem escapar do colapso. Além de mais gasto com funcionários, têm maior custo por causa do aumento do preço de matérias-primas.
Desde o ano passado, estão em falta MDF, chapa de fibra de madeira usada na produção de lateral, tampa e fundo de caixões. “Hoje, MDF é igual a ouro para quem tem, pois quase ninguém encontra”, assinala o representante comercial Jorge Augusto da Silva, que trabalha no Piauí para fábrica do setor.
Associações e sindicatos de móveis nacionais mostram que outros itens usados na fabricação de urnas funerárias já sofreram aumento, segundo levantamento mais recente, divulgado no último dia 10.
Abaixo, veja os principais:
TNT (usado para forrar caixões): 308%
Ferragens em geral: 144%
Puxadores de alumínio: 98%
Vidro: 72%
MDF: 62%
Madeira maciça: 60%
Tecido importado: 56%
Tecido nacional: 48,7%
Com a promessa de garantir melhor custo-benefício para as famílias, além do esforço para as contas não caírem no vermelho, grande parte das indústrias reduziu a variedade de caixões para focar na produção de modelos específicos com maior valor agregado.
“Adotamos algumas medidas, retiramos linhas de produção, para abrir mais espaço e conseguir aumentar a quantidade. Tiramos determinados produtos, abrindo mão daqueles [modelos] que vendem bem, em quantidade boa, para ajudar as empresas [funerárias]”, diz o gerente comercial Leomar Behm, que atua em fábrica no Rio Grande do Sul.
Na Região Sul, matéria-prima de caixões está em falta desde a metade do ano passado, período em que as empresas passaram a ser surpreendidas pela alta dos produtos. “Além da escassez, veio o aumento do custo. Cada compra tinha um preço novo, o que levou o repasse desse custo aos clientes”, explica Behm.
Agravante
Presidente da Abredif, Lourival Panhozzi observa que, além de toda a pressão decorrente da pandemia sobre o sistema produtivo, os profissionais têm de lidar com um adicional: “o medo do desconhecido”.
A crise sanitária global, segundo Panhozzi, pode gerar pânico e desespero antecipado em funerárias, que precisam ter seus pedidos recebidos com cautela. “Temos conversado com fabricantes para que eles mesmos, quando identificarem pedido [de caixões] fora da realidade, neguem”, ressalta.
O presidente da Afub confirma risco de desabastecimento em algumas regiões do país. “Colapso pode ser que aconteça de forma pontual, em locais com logística muito complicada ou lugares em que as pessoas não se programaram ou se planejaram para isso”, alerta Marinho.
A situação mais crítica tem forçado algumas empresas a não aceitar novas solicitações. Outras começaram a fazer reuniões nos últimos dias para analisar a medida. “Nossa média de pedido era de 500 caixões por dia. Neste mês, houve pedidos de 2.026 urnas em apenas um dia”, ressalta o representante comercial Joel Batista da Silva.
Aumento de 153%, dia
No ano passado, segundo Joel da Silva, o maior número de pedidos em um dia foi para produção de 800 caixões. Com unidades em São Paulo e no Ceará, a empresa para a qual ele trabalha acumula fila de quase 20 mil urnas, com entrega prevista a partir de junho, usando frota de 22 caminhões.
Cada caminhão carrega carga de até 240 caixões. “Há 70 cargas na fila para produzir hoje, além de outros 160 pedidos para digitar”, relata Silva. O representante comercial ressalta a possibilidade de uma única solicitação demandar produção de dezenas de urnas.
“A gente continua com alguns incêndios para apagar”, pondera, referindo-se à alta demanda. Em seguida, reforça o desejo para que a pandemia acabe logo e dê fôlego a todos os sobreviventes. “Temos que pedir a Deus para diminuir os óbitos e que isso tudo termine”, conclui.
Fonte: Metrópoles