

Quando Jack Nicholson subiu ao palco do Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles, para revelar a vencedora do Oscar na categoria melhor atriz, em 1999, brasileiros e brasileiras fãs da sétima arte aguardaram, esperançosos. Fernanda Montenegro concorria ao maior prêmio do cinema mundial após brilhar no papel de Dora, em “Central do Brasil”.
Fernanda Montenegro e Vinicíus de Oliveira em cena de “Central do Brasil”, filme de Walter Salles.
O filme de Walter Salles conquistou críticos internacionais e alçou um dos voos mais altos do cinema nacional. A atuação de Fernandona — dama do teatro e da televisão brasileira já naquela época, aos 68 anos — havia lhe rendido o Urso de Prata, na Berlinale, o prêmio da associação de críticos de Los Angeles e indicações ao Globo de Ouro e à associação de críticos de Nova York. Quando Nicholson anunciou o nome de Gwyneth Paltrow, que concorria por “Shakespeare Apaixonado”, teve início uma indignação coletiva que já dura mais de 20 anos, mas não incomoda, de forma alguma, a própria Fernanda. Sempre educada, ela fala sobre o episódio com desprendimento. “Era impossível (eu) levar aquele prêmio. Imagina? Meryl Streep perdeu, a (Cate) Blanchett no auge de sua… Nossa senhora, fez duas Elizabeths extraordinárias! Tinha mais alguém lá… Como é que eu ia pensar em ganhar alguma coisa”, comentou, em entrevista a Edney Silvestre, para a “Globo News”. Ao lado de Fernanda, Gwyneth e Cate, concorriam também, naquele ano, Meryl Streep e Emily Watson.
“Fiquei lá, foi interessante, importante. Não é que não é importante, não estou jogando fora, não estou menosprezando, pelo amor de Deus. É uma experiência humana e, dentro da nossa área, algo espantosamente interessante de ver.”
Fernanda Montenegro em sua chegada ao tapete vermelho do Oscar, em 1999.
A carreira na televisão e o brilho no teatro
Fernanda Montenegro não é alguém que precise ser apresentada no Brasil. Suas participações em novelas, filmes e minisséries, além de sua carreira nos palcos, a colocaram em uma espécie de altar da atuação em um espaço dificilmente dado a qualquer outro artista por aqui.
Tente buscar no Google “quem é a maior atriz brasileira” e (não) se surpreenda com os resultados múltiplos que se referem a Fernanda Montenegro. Ou melhor, Arlette Pinheiro da Silva Torres, a jovem carioca que começou sua carreira artística quando passou a integrar o grupo de teatro da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ) no Centro do Rio. Em 1951, Arlette foi a primeira atriz contratada pela TV Tupi. Naquela época, ouviu que seu nome era considerado comum demais para uma personalidade e passou a adotar Fernanda, por gosto pessoal mesmo. Ao longo das décadas, viveu um sem número de personagens em telenovelas, peças de teatro e outros produtos audiovisuais. A primeira novela da TV Globo foi “Baila Comigo”, de Manoel Carlos, em 1981.
“O Auto da Compadecida”: Fernanda Montenegro deu vida à Nossa Senhora
Ao lado de Paulo Autran, viveu uma das cenas mais emblemáticas da televisão: a guerra de comida entre Charlô, sua personagem, e Otávio, interpretado por Paulo Autran, em “Guerra dos Sexos”. Em 1991, viveu a cafetina Olga Portela, em “O Dono do Mundo”, de Gilberto Braga, e a lista se estende quase sem fim. Quando a indicação ao Oscar veio, Fernanda já era Fernanda há muito tempo. Na minissérie e no filme de “O Auto da Compadecida”, adaptação do texto de Ariano Suassuna, interpretou uma divindade de fato, embora já fosse tratada assim por aqui desde muito antes. Em 2013, Fernanda Montenegro levou o troféu de melhor atriz na 41ª edição do Emmy Internacional, o Oscar da televisão mundial. O prêmio veio por sua atuação em “Doce de Mãe”, especial de fim de ano da Globo.
Afinal, por que Fernanda não levou o Oscar?
Aqui, estamos diante de uma pergunta que não tem uma resposta definitiva — mas algumas observações podem ser feitas. Fernanda Montenegro é um ícone da atuação no Brasil, mas era pouco conhecida lá fora. Ela mesma falou sobre isso em entrevista a Edney Silvestre, para a “Globo News”.
Ao comentar sobre sua ida ao programa de entrevistas de David Letterman, popular apresentador americano, Fernanda contou que tentou recusar o convite. “Eu não queria ir no Lettermann. Eu disse: ‘Vocês estão loucos? Esse homem não me conhece, ninguém me conhecia”, disse. “‘(Ela) É latina!’, pode ser do México para baixo. Não vou”, disse a atriz, tentando ilustrar a forma como a indústria americana costuma pensar.
Os prêmios de cinema nos Estados Unidos, no geral, costumam ser bastante autocentrados. Com exceção da cena independente, foram anos e anos até que filmes estrangeiros começassem a ter algum tipo de reconhecimento na temporada de prêmios principais. Ainda mais para a Academia. O comentário sobre latinos de Fernanda não é de todo errado. A Academia costuma olhar mais para o cinema europeu do que para baixo dos trópicos quando a questão é indicar filmes estrangeiros.
Arthur Cohn, Fernanda Montenegro, Vinicius de Oliveira e Walter Salles posam com o troféu do Globo de Ouro, em janeiro de 1999, no Beverly Hilton Hotel, em Beverly Hills.
Na última metade da década, a organização dos Oscars tem tentado deixar os prêmios mais inclusivos, em diferentes frentes. O resultado, aos poucos, se revela nos envelopes abertos: em 2018, o mexicano “Roma” levou quatro prêmios, incluindo melhor direção com Alfonso Cuarón, e era um forte concorrente à categoria principal. O Oscar de melhor filme internacional (conhecido até 2020 como melhor filme de língua estrangeira) só foi oficialmente criado na 29ª edição do prêmio, em 1957. Em 93 anos de Oscar, apenas um filme não interpretado em inglês levou a categoria principal: “Parasita”, de Bong Joon-Ho, da Coreia do Sul, no ano passado. A Academia historicamente sempre foi pouco representativa em suas indicações e, especialmente, em seus premiados. Apenas cinco atores, entre homens e mulheres, levaram prêmios nas categorias de atuação em filmes cujo idioma mais falado por eles não era o inglês: Sophia Loren em “Duas Mulheres”, Robert De Niro em “O Poderoso Chefão – Parte II”, Roberto Benigni em “A Vida é Bela”, Benicio del Toro em “Traffic” e Marion Cotillard em “Piaf — Um Hino ao Amor”.
Refletindo nessa linha, é óbvio que Fernanda não levaria aquele prêmio. Uma atriz sul-americana pouco espaço teria dentro do Dorothy Chandler Pavillion. A americana Gwyneth Paltrow, certamente talentosa e com seus então 27 anos, era uma seleção de predicados do “star quality” ambulante. Assim como foi Jennifer Lawrence em 2013, quando venceu sobre Emmanuelle Riva (1927-2017), renomada atriz francesa de 86 anos na época. No ano passado, em entrevista à “ABC”, a atriz americana Glenn Close, que nunca levou um Oscar, comentou sobre aquele edição do Oscar. “Honestamente, eu nunca entendi como é possível comparar atuações. Eu me lembro do ano em que Gwyneth Paltrow ganhou daquela atriz incrível de ‘Central do Brasil’. Eu pensei: ‘O quê? Não faz sentido’”, disse a americana, que já concorreu sete vezes ao Oscar — sem vencer nenhuma — e tenta uma oitava vez neste ano, como melhor atriz coadjuvante em “Era Uma Vez Um Sonho”.
Em entrevista ao programa “Conversa com Bial”, Fernanda demonstrou, mais uma vez, toda classe que lhe é peculiar. “Eu agradeço a Close por ter falado de mim. Isso já tem 21 anos, não é brincadeira, não. Então, uma colega da dimensão dela lembrar do meu trabalho eu considero um prêmio”, reconheceu. Ela também disse, em entrevista ao “Globo”, que teria dado o prêmio à Blanchett, se pudesse.
Gwyneth Paltrow sorri com sua estatueta do Oscar de melhor atriz por “Shakespeare Apaixonado”.
‘Bruxa’ na fogueira com os livros e fã de Simone de Beauvoir
Em 2019, Fernanda apareceu na capa da revista “Quatro Cinco Um”, especializada em literatura, amarrada como uma bruxa em cima de livros amontoados como em uma fogueira. O ensaio, uma forma de protesto contra a censura, despertou a ira de Roberto Alvim, então diretor da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e que seria, posteriormente, secretário especial de Cultura do governo Bolsonaro (cargo do qual foi exonerado após copiar um discurso nazista).
“A foto da sórdida Fernanda Montenegro como bruxa sendo queimada em fogueira de livros, publicada hoje na capa de uma revista esquerdista, mostra muito bem a canalhice abissal destas pessoas, assim como demonstra a separação entre eles e o povo brasileiro”, escreveu ele, provando, mais uma vez, que o poder da cultura como instrumento de iluminação é o maior contra golpe que se pode dar à censura.
A performance da atriz no monólogo “Viver Sem Tempos Mortos” (2009), escrito pela própria Fernanda com base em obras de Simone de Beauvoir e dirigido por Filipe Hirsch, caminha no mesmo sentido. Sozinha em um palco com poucos itens de cenografia — e sentada em um simples banco — ela bate o texto por uma hora sem qualquer tipo de hesitação. Dizia parte dele: “A impressão que eu tenho é a de não ter envelhecido embora eu esteja instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou pra mim.
Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro.”
“O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa pra minha liberdade hoje? Não sou escrava dele.” “O que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida, unicamente o sabor da minha vida. Acho que eu consegui fazê-lo; vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.” Fernanda Montenegro pode não ter levado aquele Oscar oficialmente, mas, no que depender do público brasileiro, tem a estatueta desde sempre.
Fonte: Hypeness