Em 28 de abril deste ano, na cidade de Cianorte, no Paraná, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, anunciou a criação de um aplicativo para que crianças e adolescentes possam denunciar casos de violência.
Na ocasião, Damares participava de uma reunião, realizada a seu pedido, no município localizado no noroeste do estado que, no mês anterior, tinha sido palco de um crime bárbaro: a morte do menino Cristofer Matos, de 3 anos. A criança foi vítima de agressões domésticas e morreu em decorrência do rompimento do pâncreas e hemorragia interna. O principal suspeito é o padrasto de Cristofer, preso dias após a morte do menino.
Durante o evento, Damares chegou a se dizer “envergonhada” e pediu perdão ao avô da criança pelo fato de o app “não ter chegado antes”.
Três meses depois, o aplicativo anunciado pela ministra ainda não está disponível nas lojas, nem para o sistema Android nem para o iOS.
O lançamento do aplicativo chegou a ser anunciado por políticos locais, aliados do presidente Jair Bolsonaro.
Em suas redes sociais, o deputado Delegado Francischini (PSL) chegou a divulgar um vídeo com relatos da ministra sobre a reunião e o app.
“Damares Alves foi a Cianorte levar medidas protetivas para crianças e adolescentes e lançar um aplicativo em parceria com o Unicef para as vítimas realizarem denúncias de violência doméstica”, comemorou o deputado estadual, no Facebook.
A reunião contou com a participação de autoridades públicas municipais e estaduais. Na época, o secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício Cunha, que acompanhava Damares, chegou a informar que o lançamento seria no dia 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
A data, no entanto, marcou apenas mais um anúncio, desta vez em Brasília, do mesmo aplicativo. A promessa era de que haveria uma versão para site e celular.
Na cerimônia, realizada na sede do ministério com presença do presidente da República, Jair Bolsonaro, foi divulgado um novo prazo para a entrega da ferramenta: segunda quinzena de julho. Até agora, contudo, nada.
A ferramenta é uma iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com outras instituições e com o governo brasileiro. Todo recurso para o desenvolvimento provém da inciativa privada. Não há dinheiro público envolvido.
Nova previsão: segundo semestre
De acordo com informações passadas pelo Unicef ao Metrópoles, a perspectiva é de que o aplicativo seja lançado no segundo semestre, em agosto ou setembro.
Além disso, deve ser realizada uma campanha de divulgação com envolvimento das redes escolares de estados e municípios. A ideia é que as escolas ajudem a ensinar as crianças a usar a ferramenta.
O Unicef confirmou a parceria e que o aplicativo está sendo desenvolvido, além da precipitação de Damares no anúncio. Segundo a instituição, até o nome apontado pela ministra na época ainda era provisório. A ferramenta, anunciada no primeiro momento com o nome de “Dica”, agora pode ser lançada com o nome de “Sabe – Conhecer, Aprender e Proteger”.
No ministério, o desenvolvimento do aplicativo ficou a cargo da Secretaria Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes (SNDCA) e da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH).
A ferramenta conta com financiamento de Childhood Brasil, Fundação Abrinq e Instituto Cores, todas instituições voltadas à proteção de crianças e adolescentes.
DH Brasil
A pasta oferece hoje um aplicativo para denunciar violações de direitos humanos que é o Direitos Humanos Brasil. Ele reúne tanto as denúncias de violência contra a mulher, por meio do Disque 180, quanto as demais formas de violência que podem ser reportadas pelo serviço Disque 100.
Por meio do canal, é possível realizar denúncias de forma identificada ou anônima. Não existe, no entanto, no DH Brasil um atendimento específico com linguagem apropriada para crianças e adolescentes, como a que o Sabe pretende oferecer.
Cada denúncia recebida pelo DH Brasil recebe um número de protocolo para acompanhamento em tempo real dos andamentos. O aplicativo também conta com a possibilidade de denúncias por videochamada, chat com um atendente, e atendimento em língua brasileira de sinais (Libras).
Desmantelamento
Embora o aplicativo não envolva recursos governamentais, os anúncios feitos e o atraso na entrega são só uma das faces da dificuldade do governo em ações com o objetivo de proteger crianças e adolescentes. A conclusão é de levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Segundo o relatório, há no governo Bolsonaro um abandono de políticas públicas voltadas para esse público, que estavam sendo construídas ao longo de anos.
De acordo com o Inesc, em 2020 e 2021, não houve previsão de nenhuma ação orçamentária que tenha como foco principal o enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes.
“Se há recursos no governo Bolsonaro para esta ação, não estão nomeados em nenhuma rubrica orçamentária. Até mesmo o programa principal referente a esse público foi retirado do Plano Plurianual vigente: 2062 (Promoção, proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes)”, afirma a pesquisadora do Inesc, Thallita de Oliveira.
“Tem sido difícil fazer o controle de quanto se tem gasto e o que se tem feito para enfrentar as violências contra crianças e adolescentes e mais ainda suas especificidades: doméstica, sexual etc. O que se pode depreender desta análise é que o governo federal não tem interesse nenhum em combater essa violação de direito tão extrema que são as violências vivenciadas por esse público”, diz Thallita.
Fim dos recursos
A escassez de recursos investidos nessa área, no entanto, teve início em 2016, ano em que a ex-presidente Dilma Rousseff sofreu o impeachment. Naquele período, houve uma previsão de gasto (autorizado) de R$ 1,6 milhão, mas, desse valor, só houve desembolso para despesas de anos anteriores, os chamados restos a pagar.
A partir de 2017, não houve previsão de recursos, aparecendo apenas restos a pagar. Isso ocorreu tanto em 2017 quanto em 2018.
“Em 2019, o programa nem aparece na descrição do orçamento do ano. O que parece é que a estratégia orçamentária em relação ao enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes muda, pois este PO [plano orçamentário] se integra ao Plano Orçamentário mais amplo: Enfrentamento das Violências Contra Crianças e Adolescentes, diluindo essa, que é uma violência específica e precisa de formas peculiares para preveni-la, entre todos os outros tipos de violência”, destaca o levantamento.
“Em breve”
Por meio da assessoria, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, informou que o “aplicativo para crianças e adolescentes é uma parceria entre Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o UNICEF e já está desenvolvido e internalizado no ambiente de tecnologia do órgão”.
A pasta não passou uma data para o que o aplicativo seja disponibilizado nas redes. “Em breve, o aplicativo será disponibilizado nas lojas virtuais, com o processo de homologação junto às mesmas em andamento”.
De acordo com a pasta, neste momento “está sendo concluída a integração com as bases de dados de Conselhos Tutelares e outros órgãos da rede de proteção”.
Governo cita “esforços”
Em relação ao orçamento destinado ao enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, a assessoria da pasta informou que “o governo federal vem empreendendo esforços junto ao Ministério da Economia e ao Congresso Nacional para aumentar o referencial monetário destinado às ações sob sua gestão”.
A pasta ainda apontou que “comparado ao ano de 2020, o orçamento 2021 da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA), houve um aumento de 22,10%, ultrapassando o valor de R$ 100 milhões”.
“Esse recurso será destinado às ações de construção, reforma, equipagem e ampliação de unidades de atendimento socioeducativo, de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte e, dentre outros, de equipagem e de modernização da Infraestrutura dos órgãos, das entidades e das instâncias colegiadas de promoção e de defesa dos Direitos Humanos”, destacou.
Fonte: Metrópoles