Ontem, Natália Deodato, do BBB 22, sofreu com depois de ser sentida traída após Lucas beijar Eslovênia durante a festa de quarta-feira (26). Entretanto, suas lágrimas foram um grande desabafo sobre a questão da solidão da mulher negra. Natália desabafou sobre não se sentir amada e sempre ser abandonada.
Hoje pela manhã, Lina Pereira, a nossa Linn da Quebrada do BBB 22, refletiu sobre o que ocorreu. Ao invés de reduzir a discussão sobre “chorar por macho”, a multiartista travesti trouxe para o debate a questão do amor como uma questão social.
Linn da Quebrada falou do amor como um direito e refletiu sobre corpos excluídos do romance por questões sociais
“Se a gente não discute o amor e ele não sai desse terreno do ‘intocável, do sagrado. Nós não percebemos porque alguns corpos são mais amados que outros (…) corpos gordos, negros, trans, de pessoas com deficiência, a gente nem pensa nessas pessoas quando pensamos em amor”, disse Linn da Quebrada.
O que é sagrado é intocável, não é palpável. E o sagrado é o que está distante de nós. O amor e o cuidado – que Natália e outras milhões de pessoas não têm acesso – deveriam ser democratizados, mas existem diversas questões da nossa estrutura social que impedem isso.
Desabafo de Natália expõe a questão do cuidado e do afeto relacionado com estruturas como capitalismo e racismo
“Às vezes, tudo que a gente quer é um abraço, principalmente nós, mulheres negras, que somos vistas como fortes. Temos que lidar com muito homem escroto. É gostosa para comer, mas para assumir relação, não”, disse Natália durante seu desabafo na quarta-feira. O racismo, a transfobia, o capacitismo e a gordofobia são alguns dos aspectos sociais que fazem com que a solidão e a exaustão façam parte da vida não-amorosa da sociedade. E Linn evoca o pensamento de diversas pensadoras ao refletir sobre essa questão.
O amor cultural, social e político
A representação cultural comum do amor que prevaleceu no século passado e durante todo o capitalismo é o de praxe dos filmes: um homem e uma mulher branca, geralmente de classe média ou ricos, se apaixonam e vivem um romance com o felizes para sempre no final.
E a filósofa e teórica social estadunidense bell hooks sempre colocou o amor como fato central do seu pensamento. Em seu texto ‘Vivendo o Amor’, a intelectual reflete sobre como a escravidão e o racismo impactam a vida afetiva para a mulher negra. Hooks afirma que as imposições do sistema econômico capitalista e do racismo impactam estruturalmente a forma como as mulheres negras recebem e exercem o amor. A teórica reflete que, em muitas famílias negras, a simples condição de fazer com que um filho ou uma filha sobrevivam já é lido como um fato de amor. “A opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade”, diz Hooks em ‘Vivendo de Amor’. “Geralmente enfatizam nossa capacidade de “sobreviver” apesar das circunstâncias difíceis, ou como poderemos sobreviver no futuro. Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar condições para viver plenamente. E para viver plenamente as mulheres negras não podem mais negar sua necessidade de conhecer o amor”, continua. Ao olhar para os dados socioeconômicos, podemos esclarecer também essa questão à nível social: No estado da Bahia, 75% das mães solo que vivem com menos de R$ 400 por mês são negras. À nível nacional, as mães sem companheiro ou companheira são em sua maioria negras. O pensamento de hooks pode ser acompanhado junto de outra teórica, a russa Alexandra Kollontai. A revolucionária socialista considerada uma das maiores pensadoras do feminismo da história, já avisava em 1911, no clássico “As Relações entre os Sexos e a Luta de Classes”, que o capitalismo como sistema econômico era prejudicial ao amor, ao cuidado e à família.
Alexandra Kollontai, revolucionária comunista, foi uma das primeiras mulheres a refletir sobre a relação entre capitalismo e afeto
“A influência destruidora do capitalismo, que aniquila todos os fundamentos da família operária, obriga o proletariado a adaptar-se, instintivamente, às condições do mundo que o cerca e provoca, portanto, uma série de fatos referentes às relações entre os sexos, análogos aos que se produzem, também, em outras camadas da sociedade”, explica Kollontai. A necessidade de sobreviver, de trabalhar por horas e horas, além da divisão sexual do trabalho, como aquele apontado por Silvia Federici em ‘O Calibã e a Bruxa’ aprofunda a desigualdade de gênero e a dificuldade de acesso ao amor. Quando pensamos em pessoas trans, os dados se mantém. Com a esmagadora maioria relegada ao trabalho na prostituição (90%), o amor é negado para as transexuais, travestis e para os homens trans no nosso país. O amor de Hollywood é uma invenção que reforça que esse afeto só pode ser acessado por uma classe de pessoas. E nosso sistema econômica aprofunda essas dificuldades. Como alcançar o amor, portanto?
O amor é um direito
O pensamento de bell hooks e Alexandra Kollontai não é uma rua sem saída. Mesmo com esses apontamentos sobre as condições materiais e amorosas da sociedade, ambas as pensadoras refletem sobre como o amor (e o acesso a ele) pode ser um instrumento de transformação para uma sociedade mais igualitária.
Para o pensamento de Kollontai, o processo para a conquista de relações afetivas mais justas, igualitárias e bem distribuídas ao redor de toda a sociedade passa por uma transformação econômica ampla, onde homens e mulheres têm jornadas laborais similares, têm tempo para o cuidado dos filhos, dividem o trabalho doméstico e, de forma ampla, tem condições de amor e cuidado justas entre si. “Apenas tomando este caminho as mulheres serão capazes de alcançar esse distante, mas atraente alvo: sua verdadeira libertação em um novo mundo do trabalho. Durante este passo difícil para o futuro brilhante, a mulher trabalhadora, até recentemente humilhada, uma oprimida escrava sem direitos, aprende a se livrar da mentalidade de escrava a que tinha apreendido e passo a passo transforma-se em uma trabalhadora independente, uma personalidade independente, livre no amor. É ela, que lutando nas fileiras do proletariado, que garante às mulheres o direito ao trabalho, é a operária que prepara o terreno para a futura esposa livre e igual”, diz a revolucionária russa. O pensamento de Kollontai – que foi a primeira ministra de Estado mulher da história – foi fundamental para a questão de gênero da União Soviética, um dos primeiros países a legalizar o aborto e, estatisticamente, uma sociedade onde as mulheres transavam mais e melhor, onde a prostituição era quase inexistente até a Perestroika e com um nível de empoderamento político maior para mulheres do que o observado nos dias de hoje. bell hooks pensa no amor como meio para se alcançar uma sociedade igualitária. A autora afirma, inclusive, que a falta de amor recebida por crianças negras nos EUA é parte do problema que forja a ideia de um homem negro “durão”. E, para ela, a resistência do amor e do cuidado são o caminho para uma sociedade diferente. Para ela, o amor não é um fato, mas uma construção nossa, que depende de cuidado, carinho, responsabilidade, respeito, compromisso e confiança. E, sobretudo, para ela o amor é capaz de se sustentar para além das dificuldades. E é pensando nisso que homens e mulheres – ela fala diretamente a ambos – podem construir juntos uma sociedade mais igualitária, responsável e que nos salve. “Para retornarmos ao amor, para conseguirmos o amor que sempre quisemos mas nunca tivemos, para termos o amor que sempre quisemos mas não estamos preparados para dar, buscamos relações românticas idealizadas. Acreditamos que essas relações, mais do que quaisquer outras, irá nos resgatar e nos redimir da solidão. E o amor verdadeiro tem o poder de nos redimir, entretanto, temos que estar prontos para a redenção. O amor só pode nos salvar se quisermos a salvação”, explica hooks. E se tudo se constrói, o amor verdadeiro de hooks e Kollontai é também o de Linn da Quebrada. É o que olha para todos os corpos e é que garante que todos os corpos tenham acesso a um amor verdadeiro, das ruas, do trabalho, de todos. E não aquele da novela, que exclui o pobre, o negro, o gordo, a travesti, a pessoa com deficiência. O amor pode ser um caminho para encontrarmos a igualdade e, se nossa igualdade não for pautada no amor, como construção social, não teremos igualdade.
Fonte: Hypeness