Apesar de ser algo natural que acontece com metade da população do planeta, a menstruação muitas vezes ainda é um tabu – especialmente para garotas na adolescência, que estão passando por seus primeiros ciclos.
É por isso que o novo filme de animação da Pixar, Red, está sendo considerado inovador ao falar do tema sem tabu, através de uma metáfora.
O lançamento do filme trouxe o assunto à tona – e vê-lo apresentado em um filme familiar pode ser uma oportunidade para pais e adolescentes conversarem sobre ele.
Mas afinal, o que as garotas (e suas famílias) devem esperar do primeiro ano de menstruação?
O que está acontecendo com o corpo?
A menstruação é um dos eventos da puberdade nas meninas, ou seja, é uma das etapas do amadurecimento do corpo para que a pessoa possa ter filhos.
Antes da primeira menstruação, o corpo da menina vai apresentar os primeiros sinais da puberdade conforme o seu eixo hormonal passa a ser ativado, explica a ginecologista Marta Francis Benevides Rehme, presidente da Comissão Nacional de Ginecologia Infanto Puberal da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).
Os hormônios começam a aumentar no corpo a partir de 8 anos de idade e, por volta dos 10 anos, as meninas vão passar pelo aparecimento das mamas – a chamada telarca. Depois começam a aparecer os pelos e, entre 11 e 14 anos, elas passam pela menarca – a primeira menstruação.
“Nada mais é do que o amadurecimento biológico do corpo, que é controlado por uma região do cérebro chamado hipotálamo, que produz os hormônios responsáveis por essas mudanças no corpo e pela menstruação”, explica o ginecologista Carlos Moraes, especialista em perinatologia pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein.
A menstruação acontece depois que o corpo começa a ovular. Com os óvulos maduros, as paredes do útero se tornam mais espessas para receber um óvulo fertilizado. Quando a fertilização não acontece, essa camada de células é liberada pelo corpo: é o sangue da menstruação.
A idade em que a menarca acontece vem caindo com as décadas – e de maneira geral é bem mais cedo hoje do que no início do século passado, explicam os ginecologistas. “Não temos uma explicação exata do porquê, mas existem várias hipóteses, como a mudança na alimentação”, afirma Moraes.
Meu fluxo é normal?
Nos primeiros dois anos após a primeira menstruação, explica Marta Rehme, é comum que a menstruação não seja regular – a intensidade do fluxo de sangue e a sua frequência podem variar. Ou seja, o sangramento pode ser intenso ou mais fraco, acontecer todo mês, mais de uma vez por mês ou não acontecer por um período de tempo maior.
“Isso acontece porque a ovulação se dá quando o corpo produz estrogênio, na primeira fase do ciclo menstrual. A menstruação acontece quando o corpo produz progesterona, na segunda fase do ciclo. Quando as meninas são jovens, o corpo ainda não está totalmente regulado e essa produção hormonal pode variar, o que causa a irregularidade no ciclo e a variação do fluxo”, afirma Moraes.
Depois desses dois anos, o ciclo tende a regularizar e a menstruação acontece a cada 28 dias, podendo variar para 29 ou 30 dependendo da mulher.
No início da menstruação – na menarca e depois nos primeiros dias da menstruação – é normal que a cor do sangue seja mais amarronzada. O fluxo pode aumentar no segundo ou terceiro dia e é normal que dure até 8 dias.
“A quantidade de sangue é algo que pode ser observada pela troca de absorventes. A troca está sendo necessária com muita frequência? Está ficando tão cheio que está vazando? É normal que o absorvente fique cheio no primeiro ou segundo dia e depois vá diminuindo”, explica Rehme.
A irregularidade no fluxo e no ciclo nesses dois primeiros anos, explica a médica, é normal e normalmente não precisa ser investigada. “O excesso de exames pode levar a diagnósticos prematuros”, diz ela. Mas é preciso fazer uma investigação médica caso o sangramento dure mais do que 8 dias ou que a quantidade de sangue seja tão grande a ponto de causar problemas de saúde, como uma anemia.
As cólicas
Após a primeira menstruação, é normal que as meninas passem a sentir as cólicas menstruais – dores no abdômen que podem irradiar para as costas ou as penas e são chamadas nessa fase de “dismenorreias primárias”.
“A cólica está ligada à bioquímica das substâncias que atuam na menstruação, como as prostaglandinas, que promovem a contração da musculatura do útero e causam inflamação”, explica Rehme.
“Essa dor pode ser desde um mal estar leve a algo intenso que a menina não consegue ir para a escola”, explica Rehme. O tratamento dessa dor normalmente é feito com um anti-inflamatório.
Caso a dor seja muito intensa, o médico pode investigar se há alguma outra causa para ela, explica Rehme.
A visita ao ginecologista
É muito importante que a menina faça uma visita (que muitas vezes é a primeira) ao ginecologista após a primeira menstruação. Nessa consulta, o médico vai verificar que tudo está acontecendo dentro do esperado, vai orientar a garota sobre o funcionamento do ciclo menstrual, tirar dúvidas e falar sobre prevenção de doenças.
“É importante que a menina entenda que a menstruação é um evento natural da mulher, que significa que ela tem um eixo hormonal funcionante”, afirma Rehme. “Ela precisa ser entendida como uma coisa positiva, natural, não algo incômodo, que causa vergonha.”
A ginecologista explica ainda que nessa visita ao médico a menina pode aprender também formas de lidar com essa mudança na vida, no corpo e até mesmo no humor.
“Por exemplo, se ela está perdendo aulas de natação ou idas à piscina, o médico pode verificar se ela pode usar um absorvente interno, mesmo que ela ainda não tenha iniciado sua vida sexual”, explica Rehme. “Dependendo do tipo de hímen (uma pele na entrada da vagina), ela pode usar o absorvente interno sem problemas.”
Sexualidade, prevenção de gravidez e ISTs
A visita ao ginecologista também é importante para que a menina aprenda sobre prevenção de gravidez (métodos contraceptivos) e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis.
“É um aprendizado muito importante mesmo que ela não tenha iniciado sua vida sexual e não vá fazê-lo tão cedo”, explica Rehme.
A ginecologista afirma que não é preciso ter medo que a explicação vá incentivar o início da vida sexual.
“É preciso que a menina entenda o que está acontecendo com o corpo: agora ela tem um corpo apto a reproduzir. Não é para incentivar a atividade sexual ou para fazer com que ela use anticoncepcional, mas para ela estar preparada para as mudanças em seu corpo e para que entenda os riscos que corre”, afirma a médica.
“Orientar não significa que você esteja incentivando. É como o cinto de segurança – quando você orienta o uso, não significa que está incentivando a pessoa a correr e causar um acidente”, explica Rheme.
“É importante ela ter orientação do médico, da escola, dos pais, porque senão vai buscar essa informação em outro lugar – e geralmente um lugar onde a informação vai estar errada”, afirma Carlos Moraes. “Hoje em dia há um excesso de informações disponíveis na internet, ou mesmo com amigas – e muitas vezes são informações incorretas e perigosas.”
É justamente a falta de orientação adequada que leva a problemas como o alto índice de gravidez na adolescência que temos no Brasil, afirma Marta Rheme.
Higiene íntima
A primeira menstruação também é um momento em que a garota precisa receber novas orientações sobre higiene da área íntima.
Os absorventes, por exemplo, devem ser trocados várias vezes por dia, mesmo que o fluxo não seja intenso, para evitar a proliferação de bactérias.
É normal que após a menstruação a menina passe a ter mais corrimento – que deve ser transparente ou leitoso, sem cheiro ou cor amarelada (que podem indicar presença de microrganismos nocivos).
O uso de calcinhas de algodão é indicado para a correta ventilação da área e ela deve evitar ficar de biquíni molhado por muito tempo – o que pode causar candidíase.
Para entender como se higienizar, é importante que a menina entenda a diferença entre a vagina (o canal interno que leva ao útero) e a vulva (a área externa, onde estão os pequenos e grandes lábios, o clitóris, os pelos pubianos).
Muitas mulheres adultas até hoje não se atentam para essa diferença, explicam os ginecologistas, mas ela é importante porque a vagina não precisa de qualquer típo de higienização – ela se limpa sozinha, e inserir água ou sabão nessa área interna pode afetar a flora vaginal (as bactérias benignas que vivem ali) e causar doenças.
Já a vulva, explicam os médicos, precisa de higienização com água e sabonete neutro – ou sabonetes íntimos específicos para isso.
É importante que a menina saiba também que a higienização após a ida ao banheiro deve ser feita de frente para trás, de forma a evitar contaminar a vulva com bactérias da evacuação.
Pelos e cheiros
A menina que passa pela primeira menstruação pode esperar também uma série de mudanças no corpo – muitas que começam até dois anos antes da menstruação.
É o caso do crescimento dos seios e do surgimento de pelos no corpo.
O aumento dos níveis de estrogênio causa uma série de outras mudanças – ele afeta o crescimento dos ossos longos, por exemplo, então o estirão de crescimento da puberdade costuma ser interrompido pela primeira menstruação.
“É por isso que, se a menina menstrua muito cedo, antes dos 8 anos, é um processo que normalmente precisa ser medicamente interrompido”, explica Carlos Moraes.
Com o estrogênio também há um acúmulo de tecido adiposo nos quadris, que se alargam para que o corpo esteja preparado para a gestação e o nascimento de um bebê.
Pode também haver mudanças de cheiro no corpo trazidas pelos hormônios, explica Rheme. Essa é a fase em que muitas mulheres passam a usar desodorante nas axilas – que não faz mal, mas cujo uso é opcional, explica a médica.
Mulher branca de óculos mostra absorvente para a filha, uma menina branca de cabelo comprido
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É importante que o assunto não seja uma tabu
Mudança de comportamento
A menstruação acontece na adolescência (definida pela OMS como idade entre 9 e 19 anos) um período onde o cérebro ainda está passando por um amadurecimento.
“Locais do cérebro que são as sedes das emoções amadurecem mais cedo do que o lobo frontal, que é responsável pelo raciocínio, o autocontrole, etc”, explica Marta Rehme.
Ou seja, é normal que adolescentes – tanto meninos quanto meninas – tenham um comportamento mais impulsivo, menos cauteloso. Os hormônios produzidos pelo corpo nessa fase de puberdade também podem afetar o humor.
“Eles acham que são invulneráveis, que o perigo não vai atingi-los. E quando têm que pesar entre o risco e benefício, tendem a escolher o maior benefício, independentemente do risco. Muitas vezes elas ainda não sabem o que querem, não têm uma meta vocacional, e sentem tudo de forma mais intensa”, afirma a ginecologista.
“É normal que as meninas passam por mudanças de humor na mesma época em que estão passando pela menstruação”, explica Rehme.
“E com o estrogênio atuando no cérebro, as meninas começam a ter um despertar da sexualidade – que já estava lá, mas atinge novos contornos. Muitas vezes a adolescente começa a querer iniciar a vida sexual, e nesse sentido pode entrar em confronto com os pais”, afirma. “As meninas também passam a ter uma maior preocupação com a imagem, uma necessidade maior de privacidade, e é uma fase em que o grupo social passa a ter uma maior importância.”
A especialista diz que essa mudança de comportamento pode assustar muitos pais. “Eles estranham esse comportamento, porque até então os país eram os ídolos”, afirma Rehme.
A psicóloga Paula Peron, professora da PUC/SP, explica que essas mudanças da subjetividade, no entanto, são muito diferentes de menina para menina.
“A vivência desse processo vai ser muito singular. Claro que existem marcas típicas da cultura contemporânea ocidental, mas essas mudanças biológicas não são vividas da mesma maneira por cada pessoa”, explica.
Nessa fase, diz Peron, existem muitas expectativas sociais sobre como os pais e como as meninas deveriam se comportar. “É preciso que os envolvidos decidam se vão querer fazer valer ou não essas expectativas”, afirma a psicóloga.
Segundo ela, a tendência é que a relação entre pais e filhos mude nessa fase, mas isso pode não acontecer. “O fato menstrual não necessariamente vai mudar a subjetividade”, diz ela.
“Alguns pais vão ter mais dificuldades em lidar com uma fase em que os filhos querem mais autonomia, outros vão achar mais fácil. Não há como prever para que direção isso vai”, afirma.
O importante, em todos os casos, diz ela, é reconhecer que existem expectativas, que nem sempre elas serão cumpridas e estar preparado para lidar com uma certa decepção. Além disso, diz ela, a construção de uma boa comunicação e o diálogo são essenciais em qualquer cenário. “E isso é algo que se constrói, não é de uma hora para a outra.”
Um bom indicador para os pais e para a própria adolescente de que é preciso ou não se preocupar é o nível de sofrimento. “É importante buscar ajuda caso haja um sofrimento muito grande ou caso a adolescente esteja causando muito sofrimento em outras pessoas”, diz ela.
Fonte: Correio Braziliense