Para o jornalista que cobre música, entrevistar um grande nome da área invariavelmente implica em um misto de sentimentos: de prazer, de contemplação, de responsabilidade. Afinal, temos no lugar de fala e de escuta uma espécie de patrimônio da cultura. Era assim que eu me sentia sempre que entrevistava Gal Costa ao longo de 20 anos.Gal, que morreu nesta quarta-feira (9), era uma força da natureza. Na voz, na beleza, no talento. Ainda no início da minha jornada como jornalista cultural, em 2002, recebi a missão do meu chefe na época de conversar com Gal pessoalmente.
Ela estava iniciando uma nova fase da carreira, quando se desligava de uma grande gravadora e experimentava as dores e delícias de ser uma artista independente. Gal estava lançando “Gal Bossa Tropical”. Não é um de seus discos mais importantes, mas, olhando em retrospecto, foi um marco em sua trajetória se levarmos em consideração o caminho que a cantora trilhou dali por diante. Era a primeira vez que eu iria entrevistá-la. Mas o sorriso largo e a voz cadenciada de Gal aplacavam qualquer frio na barriga. A conversa fluiu, e Gal não escondia a felicidade de ser dona do próprio nariz pela primeira vez. Nos encontramos outras vezes, nos lançamentos de outros trabalhos, nos bastidores de shows.Gal não era do tipo de entrevistada verborrágica, que gesticulava com veemência ou que falava se atropelando. Nada disso. A forma de se expressar de Gal era como uma música de Caymmi ou de João Gilberto. Era como o balanço do mar ou um canto baixinho. Ela ouvia a pergunta, refletia, e respondia com calma. Com pausas. Não se importava em revisitar as mesmas memórias, em responder talvez às mesmas perguntas. Para mim, sem dúvida, a entrevista mais marcante que fiz com Gal foi em 2018, em São Paulo, cidade onde ela escolheu fixar residência anos atrás. São cenas ainda muito vivas em minhas lembranças. Na sede de sua assessoria de imprensa, a cantora recebia repórteres em entrevistas individuais para falar sobre o ótimo disco “A Pele do Futuro”.Nos sentamos num sofá verde confortável, cada uma em uma ponta. Ela decidiu tirar os sapatos. Intuitivamente, eu também tirei os meus. Talvez para deixá-la mais à vontade durante nossa conversa. E assim se deu a entrevista. Gal falou do disco, de política – estávamos às vésperas da eleição presidencial naquele ano – e até de temas mais íntimos, como o fato de ela ter tido menopausa precoce, o que a impediu de engravidar. Foi uma conversa boa, franca, ao melhor estilo olhos nos olhos e pés livres. Assisti a Gal muitas vezes depois pelos palcos. A última vez que a vi foi no lançamento de sua fotobiografia, numa tarde de autógrafos que provocou uma longa fila na frente da livraria, em abril deste ano. Entreguei meu livro para ela autografar. E lá estavam novamente seu sorriso largo e sua voz cadenciada. É essa imagem afetiva que guardarei na memória. Seus discos? Eles continuarão eternos na minha vitrola e nas minhas playlists.Fonte: Hypeness