A juíza Maria Fernanda Zipinotti Duarte, da 30ª Vara do Trabalho de São Paulo, condenou um casal que manteve durante 33 anos, entre 1989 e 2022, uma trabalhadora doméstica, hoje com 69 anos, em condição análoga à escravidão. José Enildo Alves de Oliveira e Maria Sidrônia Chaves de Oliveira, que negam ter submetido a idosa a jornadas inclementes e podem recorrer da sentença, foram condenados ao pagamento de R$ 800 mil à vítima, incluindo salários, verba rescisória e indenização por danos.Segundo o processo, o casal conheceu a vítima em um albergue na Mooca, tradicional bairro da zona Leste de São Paulo. À época, com 36 anos, a mulher vivia em situação de rua. Ficou combinado que ela tomaria conta da casa e das crianças, mediante pagamento de salário – o que nunca ocorreu. A vítima, hoje com 69 anos, atravessou mais de três décadas sem férias ou períodos de descanso, em uma jornada que por vezes ia das 6h às 23 horas, segundo a ação da 30ª Vara do Trabalho.”O labor em condição análoga à escravidão assume uma de suas faces mais cruéis quando se trata de trabalho doméstico”, anotou a juíza Maria Fernanda Duarte. “Por óbvio, a trabalhadora desprovida de salário por mais de 30 anos (!!!) não possui plena liberdade de ir e vir. Não possui condições de romper a relação abusiva de exploração de seu trabalho, pois desprovida condições mínimas de subsistência longe da residência dos empregadores, sem meios para determinar os rumos de sua própria vida”, sentenciou.José Enildo e Maria Sidrônia foram condenados a pagarem R$ 800 mil à vítima, valor referente aos salários não quitados e verbas rescisórias, além de indenização por dano moral coletivo de R$ 50 mil. A magistrada determinou o sequestro de bens do casal para garantir o pagamento do montante devido à vítima. A juíza declarou fraudulenta a doação de um imóvel em Caraguatatuba, no litoral Norte, feita pelo casal à neta com o ‘nítido intuito de diminuir o patrimônio’. Ela ordenou a indisponibilidade da propriedade.À Justiça, o casal argumentou que a vítima ‘dispunha de total liberdade de ir e vir, mas que por opção própria saía pouco de casa’. Os réus chamaram a ação trabalhista de ‘exagero’, alegando que ‘forneciam tudo o que ela precisava como casa, comida, roupas, calçados e dinheiro para cigarros e biscoitos’.A dupla alegou que ‘retirou’ a mulher ‘de situação de rua, resgatando-lhe a dignidade e lhe garantindo afeto familiar’. Também sustentou que ‘nunca houve trabalho escravo doméstico’, mantém ‘laços familiares’ com a vítima e a ela proporcionaram ‘ambiente familiar e acolhedor por anos’.As alegações foram rechaçadas pela juíza Maria Fernanda Zipinotti Duarte. A magistrada destacou o fato de o casal buscar trabalhadores domésticos em centros de acolhida, pessoas em situação de grande vulnerabilidade social – “firmando assim relação de absoluta dependência e que, em troca do labor doméstico, ‘ajudavam’, até mesmo fornecendo roupas e calçados, e dinheiro de pouca monta para cigarros e biscoitos (!!!)”, anotou.A trabalhadora foi resgatada durante diligência do Ministério Público do Trabalho em 27 de julho do ano passado. A Procuradoria do Trabalho passou a atuar no caso após a mulher com quase 70 anos buscar ajuda no Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico.Durante a diligência que resgatou a idosa, o homem disse que a vítima ‘era membro da família e trabalhava dentro de casa como todos os demais membros da família’. Também afirmou aos agentes que ‘não pagava salários à mulher porque já fornecia tudo que ela precisava (comida e casa)’.Oito anos antes a trabalhadora já havia denunciado o caso. Em 2014, ela procurou serviço público de saúde devido a um problema vascular na perna. Na ocasião, os agentes da Unidade Básica de Saúde acionaram o Centro de Referência Especializado de Assistência Social.Em audiência de mediação, o casal se comprometeu a registrar a trabalhadora doméstica e pagar os salários, o que nunca ocorreu. Ouvido no processo, o marido condenado sustentou que ‘apesar de ter celebrado o acordo, esqueceu-se de registrar a carteira’ da trabalhadora doméstica.Para Maria Fernanda Zipinotti Duarte, a alegação do homem é ‘irônica, acintosa e de nítida má-fé. “É certeza da impunidade que grassa, ainda, por diversos estratos sociais brasileiros”, assinalou.Já a mulher condenada por explorar o trabalho da idosa sustentou, em depoimento, que ‘por muitos anos, pagou o salário mensal’. O argumento foi rechaçado pela juíza Maria Fernanda, ressaltando que a defesa da ré indicou apenas pagamento ‘simbólico de valor semanal para aquisição de cigarros e doces, em torno de R$ 175,00 por semana’.”Ademais, de modo distinto, José Enildo admitiu que não havia o pagamento de salário, pois estavam ‘tirando uma pessoa da rua para ajudar'”, ressaltou ainda a magistrada.A juíza afastou a alegação de que ‘nada faltou’ à vítima de trabalho doméstico análogo à escravidão, ponderando que o argumento não exclui a relação de emprego. “Sequer as alegações de que a assistida assistia televisão, foi a show do “Criança Esperança”, ou mesmo que possuía a chave da casa fazem concluir que fosse membro da família e não empregada. Aliás, sequer o fato de Araci “gostar dos patrões” e com eles manter relação de vínculo afetivo”, indicou.COM A PALAVRA, A DEFESA
Até a publicação deste texto, a reportagem buscou contato com a defesa do casal, mas sem sucesso. O espaço está aberto para manifestações.Fonte: Correio Braziliense