Submissão, restrição de liberdade, condições degradantes. Mais um século se passou desde a abolição, mas as faces da escravatura persistem. As raízes da servidão atravessaram os grotões do Brasil e chegaram às grandes cidades, como a capital federal. De acordo com dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), apenas de 2019 a 2022, 193 pessoas viveram em condições de trabalho análogas à escravidão no Distrito Federal.Somente em 2022, 18 trabalhadores foram encontrados nessas condições no DF. O número representa menos de 1% das 2.575 vítimas em todo Brasil, mas preocupa. O Distrito Federal aparece em 3º no ranking das capitais com pessoas libertadas, perdendo apenas para São Paulo (714) e Rio de Janeiro (328).Muitas vezes, as vítimas desse tipo de exploração nem reconhecem que estão sendo alvo de trabalho análogo à escravidão, explica a psicóloga comportamental Geane Santos. De acordo com a especialista, a origem pobre contribui para a falta de discernimento com relação à condição vivida.””Elas não questionam. Não questionam a alimentação, a submissão, o lugar que está morando, o não acesso à saúde. Trabalham apenas para pagar a própria comida”
“, analisa Geane.Trabalhadores amontoados
No DF, uma fazenda da zona rural de Sobradinho foi cenário para a libertação de 14 cearenses em dezembro de 2022. No local, a fiscalização trabalhista encontrou alojamentos com fios elétricos expostos, onde os trabalhadores ficavam amontoados. Os banheiros não tinham limpeza e faltava até água para beber e cozinhar.Em pleno feriado de Natal, 10 trabalhadores foram descobertos escravizados numa lavoura às margens da DF-180, no Gama. No dia em que foram encontrados pela Polícia Militar, eles tinham comido apenas arroz e farinha seca. As vítimas vieram do Piauí para trabalhar, mas não recebiam pagamento e nem podiam sair do rancho. Também faltava água potável, sabonete e comida. Até o colchão que dormiam eles deviam comprar.Essas pessoas fazem parte do triste grupo de trabalhadores que vieram de outros estados para realizar seus sonhos em Brasília e acabaram explorados. Seja em busca de uma oportunidade de emprego, de melhores condições de vida ou fugindo da fome, essa sina se repetiu com 96, das 193 pessoas resgatadas na capital.De acordo com Santos, a distância dos familiares piora a saúde do indivíduo, que está física e psicologicamente vulnerável. “Depressão, ansiedade, transtorno de pânico e ideias suicidas são algumas doenças que podem ser desenvolvidas”, enumera a psicóloga.Novo perfil
O perfil das pessoas escravizadas pouco mudou desde as alforrias no século 19. A maior parte são homens pretos, jovens e com pouca escolaridade. Entre as pessoas resgatadas no DF, 90% delas têm pele preta ou parda. O restante eram pessoas brancas (9%) e amarelas (1%), que é como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identifica descendentes de asiáticos.As informações da Secretaria de Inspeção do Trabalho mostram que mais da metade das vítimas não conseguiram terminar o ensino fundamental: uma a cada três não passaram do quinto ano. Algumas, nem sequer tinham entrado na escola, eram analfabetas.Com relação à faixa etária, quase metade dos homens, que são maioria entre as vítimas, têm menos de 30 anos. Entre eles, adolescentes e idosos. Entre as mulheres, o que chama atenção é a idade avançada. Grande parte na faixa entre 34 e 44 anos de idade.Esse perfil é o reflexo da população que é mais miserável e que não tem oportunidades. A avaliação é do advogado trabalhista Luis Camargo. O especialista diz que existe uma cultura escravocrata no empresariado brasiliense que não admite pobres em posições de poder.””Os lucros impulsionam esse tipo de trabalho. Também há uma impunidade do escravocrata moderno. Nenhum foi preso, nenhum”, ressalta.”
ressalta o advogadoRelato real
Dona Zilda (nome fictício), hoje com 74 anos, viveu, por 18 anos, em condições de trabalho análogas à escravidão. Com a promessa de uma vida melhor, foi tirada da casa dos pais aos 11 anos, onde vivia com mais nove irmãos. Foi “adotada” por uma família com melhores condições de vida, acreditando que teria um destino diferente da família biológica, que vivia na roça no interior de Minas Gerais.No entanto, a realidade tomou rumos diferentes. Desde cedo, a mulher que a adotou, a quem chamava de madrinha, obrigava Zilda a fazer todos os serviços domésticos da casa e não a deixava estudar. Apesar de terem se mudado para uma cidade maior, as condições de vida proporcionadas a ela não correspondiam ao que Zilda sonhou para o próprio futuro.Ela só conseguiu se matricular na escola porque uma vizinha ofereceu ajuda e efetuou a inscrição de Zilda. No entanto, a família com quem morava fazia de tudo para impedi-la de estudar. “Quando chegava a hora de eu ir para a escola, ela enchia a bacia de roupa suja e me mandava lavar. Eu lavava correndo e ia para a escola. Conversava com a professora e explicava minha situação, para justificar os atrasos. Quando tinha prova, a professora separava a minha e ficava comigo até eu terminar. Reprovei algumas vezes e só consegui estudar até a quinta série”, relata.A libertação de dona Zilda aconteceu após a família mudar-se para o Distrito Federal. Graças a outra vizinha, Zilda, aos 20 anos, ficou sabendo que o centro espírita próximo da sua casa estava oferecendo cursos de manicure. A vizinha deu um alicate de presente para Zilda e a incentivou a procurar qualificação profissional. “A família que me adotou não gostou nada da ideia. Eles ficaram com raiva da vizinha por ter me estimulado. Afinal, eles perderiam a empregada que trabalhava de graça para eles”, conta Zilda.Mas ela não abaixou a cabeça. Apesar de trabalhar o dia inteiro limpando, cozinhando e lavando roupa, ela conseguiu fazer o curso de manicure e passou a sair todo dia batendo de porta em porta oferecendo os serviços. “Quando eu chegava tarde, minha ‘madrinha’ ficava brava. Um dia, chegou a me bater”, afirma.Foram anos de agruras, até Zilda conseguir um emprego em um salão de beleza e ir embora de casa apenas com a roupa do corpo e os documentos. “Minha ‘madrinha’ veio atrás de mim pedindo para voltar, mas eu não voltei nunca mais. Consegui emprego e batalhei. Há 32 anos, abri meu próprio salão de beleza, que tenho até hoje”, finaliza ela.Estatísticas
Segundo o MTE, no DF, supermercados atacadistas serviram de cenário para a angústia de homens e mulheres. Ao todo, eram 79 estoquistas e embaladores de sacolas que estavam sendo escravizadas.Outros 78 dos resgatados eram contratados por lojas de utilidades para vender itens de uso doméstico. Passavam de casa em casa vendendo baldes, pratos, colheres, vassouras, rodos, espanadores, etc.A agricultura foi outra área que usou mão de obra escrava nas atividades. Os trabalhadores encontrados em plantações de frutas, verduras, carvoarias mineradoras relataram serem “faz tudo”. As tarefas iam desde cozinhar, cortar carne, operar máquinas e até quebrar pedras e aplicar veneno em plantas.De acordo com relatos aos fiscais, eles contaram terem passado por jornadas exaustivas e estarem em situações degradantes: sem segurança, comida e higiene. Revelaram também serem proibidos de ir embora para não pararem os serviços. Muitos disseram estar naquela situação para pagar uma dívida com o empregador.”São trabalhadores desempregados e que estão desesperados, lutando pela sobrevivência. Por isso, acabam sendo facilmente enganados pelos comércios”, afirma o advogado Luis Camargo. O profissional diz que os empresários sabem disso e aproveitam para não pagar os direitos previstos na CLT.Quando uma empresa é flagrada utilizando mão de obra escrava, seu nome e do dono vão direto para a Lista Suja do Trabalho, disponível para qualquer cidadão e são obrigadas a pagar toda a indenização trabalhista. Nenhuma empresa do DF está na lista, mas R$ 140 mil foram pagos para as vítimas, que são enviados para abrigos no Distrito Federal.Denúncias
Em 10 anos, as ligações no Disque 100 — Direitos Humanos sobre trabalho análogo à escravidão tiveram um salto de 70%. Em 2013, 27 pessoas denunciaram submissão humana. Em 2022, esse número foi de 46, o maior da história.O Disque 100 foi uma ferramenta criada, em 2010, para denunciar violações dos direitos humanos. Qualquer pessoa pode ligar e revelar crimes que acabaram de ocorrer ou que ainda estão acontecendo. Além de trabalho escravo, o número também recebe denúncias de violência contra mulher, idosos, crianças, moradores de ruas e pessoas com deficiência.O canal também é disponível para casos de discriminação étnica ou racial e preconceitos contra comunidade indígena, cigana e quilombola. Os relatos das ligações são enviados para os órgãos responsáveis por cada tipo de violação, como delegacias, conselhos tutelares e Ministério Público.Faltam fiscais
Apesar das denúncias estarem aumentando, o Ministério do Trabalho reconhece que pode haver subnotificação. O governo federal passou a fiscalizar trabalho análogo a escravidão em 1995. Contudo, só 24 anos depois, em 2019, aconteceu a primeira operação de resgate de escravizados no DF.A porção de casos que passam despercebidos pode ser pior quando se analisa a quantidade de auditores fiscais do trabalho, responsáveis por vistoriar estabelecimentos e auxiliar as vítimas. Em 2020 eram 60 profissionais envolvidos nas ações de combate. Já em 2022, caiu para oito, uma queda de 86%. Números do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) apontam que o quadro de servidores ativos no Brasil é o menor em 30 anos. Só 48% dos postos estão desocupados.Denuncie
Whatsapp: 61 99656-5008
Telefone: Disque 100 (24h)
Email: ouvidoria@mdh.gov.br
Internet: mdh.metasix.solutions/portal/servicos
Aplicativo: Direitos Humanos Brasil
Presencial: Prédio do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Esplanada dos Ministérios, Bloco A*Estagiário sob a supervisão de José Carlos VieiraFonte: Correio Braziliense