A devoção a São Jorge sempre fez parte da vida de Soneli Gomes. Sua relação com o santo cristão vem, segundo sua memória, desde criança. “Minha mãe vai fazer 93 anos e ela sempre foi muito devota. E eu sempre acompanhei minha mãe nessa trajetória. Eu tenho São Jorge na minha casa, tenho camisa de São Jorge. Ele é o santo da minha proteção. Pelo menos uma vez por mês tenho que vir na igreja [de São Jorge, no centro da cidade do Rio de Janeiro]”, disse a aposentada de 66 anos de idade.O santo, que teria sido um soldado romano nascido na Capadócia, atual Turquia, e martirizado por sua fé cristã, é uma figura religiosa popular. Mesmo que as histórias sobre ele estejam envoltas em lendas.São Jorge: Brasilienses celebram a fé no santo guerreiro
No Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, é alvo não só de veneração por muitas pessoas, como também se tornou um fenômeno pop, estampando camisetas, tatuagens e sendo tema de diversas músicas, livros e até de uma telenovela, a Salve Jorge.Mundialmente, é considerado protetor de escoteiros mirins, soldados e cavaleiros. É padroeiro de países como Inglaterra, Geórgia e Etiópia. Aqui no Brasil, um dos times de futebol mais populares do país, o Corinthians, escolheu o Santo Guerreiro como seu padroeiro. A sede do clube é chamada Parque São Jorge.No Rio de Janeiro, onde é venerado por sambistas, e pela cultura do samba em geral, a devoção a ele atingiu outro patamar. O dia do santo, 23 de abril, é feriado estadual. E, em maio de 2019, ele se tornou oficialmente padroeiro do estado.O Corpo de Bombeiros do estado tem na figura dele seu protetor, assim como policiais militares.O mestre em Educação João Victor Gonçalves Ferreira, que estudou as festividades de São Jorge na cidade do Rio, diz que o santo cristão é, na verdade, uma figura múltipla. “Aqui no Brasil, ele ganhou muitos sentidos, em especial quando ele é associado aos orixás. Aqui no Sudeste, São Jorge é Ogum, o orixá da tecnologia, do ferro, das batalhas, o orixá guerreiro”.Na época da escravidão, os africanos aprisionados e trazidos à força para o Brasil passaram a associar seus orixás a figuras católicas a fim de poder manter sua devoção sem serem importunados pelos escravistas cristãos, dando origem assim ao sincretismo religioso brasileiro.Ogum, deus do ferro e da guerra na mitologia iorubá, foi logo associado ao soldado romano martirizado. “São Jorge ganha um outro contorno quando a ele são associadas, pelo processo sincrético, algumas características típicas de Ogum. Então é muito comum você, por exemplo, ver cerveja sendo oferecida a São Jorge. No Rio de Janeiro, quem entrou num boteco, já viu um São Jorge, com um copo de cerveja. Isso é típico de São Jorge, porque também é típico de Ogum. O sincretismo trouxe para São Jorge um valor ainda maior. Agregou a ele, valores, cultos e práticas muito simbólicas. E criou-se uma mítica em torno desse santo”, explica Ferreira.E, apesar de hoje nem todos devotos terem essa noção muito clara, as duas figuras são associadas, porém distintas. “A proximidade com as mitologias [de São Jorge e Ogum] faz com que as pessoas associem [as duas figuras]”, disse a pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Ana Paula Alves Ribeiro.Segundo Ana Paula, a concentração de terreiros no Rio de Janeiro pode também explicar a dimensão do culto a São Jorge no estado. A pesquisadora acompanha as festas dedicadas ao santo, que costumam reunir milhares de pessoas em 23 de abril, há mais de 20 anos. Ela coordena o Museu Afrodigital da Uerj, que reúne registros fotográficos de festividades populares cariocas, como as dedicadas ao Santo Guerreiro, feitos desde 2012.Fonte: Correio Braziliense