Nessa quinta-feira (29/2), o Brasil ultrapassou a marca de 1 milhão de casos prováveis de dengue em 2024, segundo dados do Ministério da Saúde. Em todo o ano de 2023, foram registrados 1.658.816 quadros possíveis da doença – de acordo com a pasta, estima-se que o país terá o dobro de casos neste ano.
“Essa provavelmente será a pior epidemia de dengue da história do Brasil”, afirma o sanitarista Jonas Brant, professor do Departamento de Saúde Coletiva (DSC) da Universidade de Brasília (UnB).
Ao todo, já são 1.017.278 casos prováveis registrados, 214 mortes confirmadas e 687 em investigação. No entanto, Brant acredita que esses números podem estar subnotificados e, na verdade, são muito maiores.
Especialistas ouvidos pelo Metrópoles consideram que alguns motivos foram determinantes para que o país chegasse a esse cenário. Entre eles estão as mudanças climáticas, com excesso de calor e chuva; desmobilização da infraestrutura de controle de vetores; demora para a tomada de medidas preventivas e a circulação de sorotipos diferentes do vírus.
Mudanças climáticas
O final de 2023 foi marcado pela antecipação das chuvas e um aumento importante da temperatura em grande parte do país provocados pelo fenômeno climático El Niño. A combinação de calor e umidade faz com que o mosquito se reproduza mais rápido.
Desmobilização da infraestrutura de vigilância
Brant lembra que, nos últimos anos, os governos redirecionaram esforços para combater a pandemia de Covid-19 e desmobilizaram a infraestrutura de controle de vetores.
Como consequência, houve redução do número de agentes de endemias envolvidos na vigilância dos focos de dengue. “Também vimos a redução da expertise. O pessoal mais antigo se aposentou e houve um baixíssimo investimento na formação de recursos humanos para vigilância epidemiológica nos últimos anos. Tudo isso fez com que a gente entrasse nesse ano muito vulnerável”, considera Brant.
Resposta lenta dos governos
O sanitarista avalia que os governos têm adotado medidas “acanhadas” do ponto de vista de recursos humanos para enfrentamento da epidemia, como a contratação de um quantitativo pequeno de agentes.
“Não vamos combater uma epidemia com estilingue quando precisamos de um canhão. Para conseguir baixar muito a infestação do Aedes aegypti e reduzir a transmissão, precisamos de uma estrutura de enfrentamento para visitar as casas em um período muito curto, e isso não é possível com um número pequeno de agentes”, considera Brant.
O sanitarista lembra que, até o início da década passada, em meados de 2010, existia um pacto entre secretarias estaduais e municipais que exigia o trabalho de profissionais para engajamento e mobilização social comunitária. Os agentes visitam as residências para ajudar os moradores a encontrar e remover os criadores do mosquito da dengue com um olhar apurado.
“Isso deixou de ser exigência. A maioria dos municípios hoje não tem um ator-chave na Secretaria de Saúde responsável por mobilização social e controle”, afirma.
Idealmente, segundo o sanitarista, os agentes de endemia deveriam começar o trabalho de vigilância aos focos de dengue entre outubro e janeiro para evitar o crescimento da infestação do mosquito no período de fevereiro a abril.
“Mas, em geral, esses são os meses de poucos casos de dengue, e os gestores estão com um olhar político para o período eleitoral ou encerrando suas gestões. Por isso, não há mobilização adequada no período correto. O problema em geral está no fato que se contratam agentes temporários nesse momento, eles vão trabalhar no período da seca e não no início das chuvas”, avalia.
O Ministério da Saúde anunciou, nesta semana, a realização do Dia D, uma mobilização nacional que ocorre no próximo sábado (2/3) para reforçar as ações de prevenção e eliminação dos focos do mosquito.
O infectologista Julio Croda, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), avalia que a ação tem mais valor como comunicação para a sociedade do que como uma medida que terá sustentabilidade no controle da doença.
“A mobilização deve ser constante. Um dia único terá pouco impacto na curva epidemiológica”, considera.
Agentes de vigilância fazem vistoria em imóveis e orientam moradores para identificar e eliminar criadouros do mosquito que transmite a dengue
Sorotipos diferentes
Na última terça (27/2), durante entrevista coletiva em que convocou a população para o Dia D, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, afirmou que uma das razões para a alta expressiva nos casos de dengue em 2024 é a circulação de sorotipos diferentes do vírus.
“Em muitos locais que tínhamos prevalência do sorotipo 1, está mudando para grande infecção do sorotipo 2, como é o caso do Distrito Federal. Há fatores ambientais, socioambientais e também a dinâmica do vírus, a sua variabilidade”, explicou a ministra.
Os quatro sorotipos do vírus da dengue são encontrados no Brasil, mas em proporções diferentes. Como estão circulando em outros locais, pessoas que já tiveram contato com o patógeno podem voltar a ficar doentes e, inclusive, desenvolver a dengue grave (hemorrágica). Ainda assim, segundo o ministério, o indicador de letalidade da doença está mais baixo do que o registrado em 2023 até o momento – 0,02 contra 0,07.
O pico da dengue ainda não chegou
Historicamente, o ponto mais alto da curva epidemiológica de casos de dengue ocorre entre abril e maio. Por isso, especialistas acreditam que o pior ainda está por vir. “Nunca tivemos tantos casos suspeitos apenas no começo da sazonalidade. O pico tradicional é no final de abril, início de maio”, afirma o infectologista Julio Croda.
A propagação da doença tem uma relação direta com a temperatura e as chuvas, que ocorrem de maneira bem importante até março. A água acumulada nesse período é o ambiente ideal para o nascimento de mosquitos no começo de abril.
“Eles vivem cerca de 30 dias. Uma vez que a pessoa é picada por um mosquito infectado, a incubação leva até 15 dias. Assim, teremos mais doentes em maio”, explica o sanitarista Jonas Brant.
Soluções
A prevenção de novos casos nos próximos meses depende do engajamento social e das autoridades. Do ponto de vista individual, a população pode contribuir criando uma rotina de manutenção da casa que inclui:
A limpeza anual das calhas, que acumulam água;
O uso de telas nas janelas e portas;
Uso de repelente.
De uma perspectiva coletiva, o professor da UnB destaca a mobilização da sociedade e do governo nas ações de limpeza pública, controle de urbanização e melhoria do planejamento das cidades para aprimorar as condições no futuro.
Do governo federal, é esperado o estabelecimento de políticas com o financiamento e a cobrança dos agentes de endemia, mobilização social e implantação de novas tecnologias.
Entre elas se destaca o projeto com a Wolbachia, uma bactéria que impede o nascimento das larvas do mosquito da dengue, evitando sua reprodução. A vacina também é uma ferramenta importante, mas deve demorar a chegar para a população e atingir uma cobertura adequada a fim de controlar a transmissão.
O que podemos esperar?
Brant acredita que a adoção de medidas na fase em que nos encontramos pode achatar o tamanho da curva epidemiológica, mas não deve acabar com a transmissão da dengue.
“É lógico que as pessoas têm um papel importante, mas, no contexto de uma doença epidêmica, o governo é fundamental. Precisamos de uma mobilização muito efetiva”, afirma.
Fonte: Metrópoles