Estamos vivendo a maior epidemia de dengue dos últimos anos e provavelmente teremos, em 2024, o pior ano da história da doença no Brasil. Apesar dessa constatação assustadora, sob o ponto de vista científico, estamos num cenário melhor do que há cinco anos. De lá para cá, já se desenham soluções capazes de, até 2034, transformar a dengue em uma doença mais rara e palatável para o sistema de saúde.
A dengue é uma doença muito complexa, por duas razões: é causada por quatro vírus diferentes, e é de transmissão vetorial, ou seja, transmitida por mosquitos, o que adiciona uma camada ambiental ao problema.
E o Aedes aegypti, o mosquito transmissor da dengue, vive do elemento mais fundamental para o ser humano, que é água. Então, temos um vetor antropofílico (totalmente adaptado a viver perto dos seres humanos) e que precisa da mesma coisa que nós.
Além disso, estamos alterando o ambiente do modo a facilitar a vida do mosquito: vivemos um processo de aquecimento global que tem ampliado a presença do Aedes, que já chegou a lugares como o centro de Paris, Japão ou Califórnia. Por tudo isso, é extremamente complexo erradicar o mosquito.
E como, nesse contexto, consigo ser otimista em relação ao problema? Não existe uma bala de prata, uma solução única para a dengue, mas hoje temos três ferramentas que nos garantem uma abordagem integral da doença e que, em breve, poderão, em conjunto, ser capazes de controlá-la. Esse tripé de combate à dengue é formado pelas vacinas, pelos medicamentos e pelo controle da capacidade vetorial.
Controle biológico do Aedes
O Brasil, assim como quase toda a América, já erradicou o Aedes aegypti. Isso aconteceu nas décadas de 1950 e 1960, quando o problema não era a dengue, mas a febre amarela urbana, também transmitida pelo Aedes.
Essa erradicação, no entanto, se deu através de um sistema que, apesar de altamente eficiente, não é mais aceitável pela sociedade. Havia uma quase militarização dos agentes de saúde, que entravam fardados nas casas das pessoas, de forma autoritária, quisessem elas ou não. Além disso, esses agentes usavam inseticidas e outros produtos altamente tóxicos.
A partir do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o Aedes aegypti começa a recolonizar toda a América. Os primeiros casos de dengue no Brasil depois dessa recolonização se deram em Roraima em 1982 e no Rio de Janeiro em 1986, quando foi criado o programa de controle de vetor que temos até hoje, e que foi incapaz de resolver o problema. Desde meados da década de 1980, o país tem sofrido epidemias sucessivas da doença.
Hoje, no entanto, não devemos mais falar de controle de vetores e sim de tecnologias de controle da capacidade vetorial, que é a capacidade de um determinado mosquito de transmitir um vírus. E é isso que estamos começando a manipular atualmente, através de duas abordagens muito interessantes.
A primeira é o uso de mosquitos transgênicos que, soltos no ambiente, ou não conseguem se reproduzir ou geram mosquitos estéreis. A segunda estratégia, ainda mais interessante, é a utilização de uma bactéria chamada Wolbachia, que é uma bactéria natural que vive nas células do estômago de mosquitos.
Quando infectado por essa bactéria, o Aedes não consegue transmitir dengue, zika ou chikungunya, porque a bactéria impede que os vírus se multipliquem. Além disso, os mosquitos infectados por Wolbachia, ao serem soltos no ambiente, infectam a população natural de mosquitos, diminuindo a capacidade também desses mosquitos de transmitirem as doenças para a população.
Em pequena escala, esse controle biológico do mosquito já se mostrou eficaz. Em larga escala, a estratégia está sendo testada em um grande estudo controlado – o Evita Dengue – que está em desenvolvimento em Belo Horizonte, Contagem e Betim, em Minas Gerais.
É um programa financiado pelos National Institutes of Health (NIH), principal agência do governo dos Estados Unidos de pesquisa de saúde pública, e pelas universidades Emory, da Flórida e Yale, dos Estados Unidos, e conduzido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fiocruz e Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), onde fazemos a análise dos casos para comparação da incidência das doenças nas regiões estudadas.
Dividimos os municípios em clusters (conglomerados de pessoas). Em alguns deles, liberamos mosquitos com Wolbachia e fazemos também o controle usual do vetor. Em outros, fazemos apenas o controle de vetor usual. Estamos no quarto ano do experimento, e os resultados serão conhecidos ao final do estudo, no ano que vem. Caso se mostre eficaz, essa estratégia oferecerá uma ferramenta extremamente importante e relativamente barata para o controle da dengue.
Vacinação
Claro que, por mais eficaz que seja, esse controle biológico do vetor não resolverá completamente o problema. Sempre há escape, e alguma parcela dos mosquitos manterá sua capacidade de transmissão, ou o vírus, com o tempo, pode vir a se adaptar à Wolbachia. É por isso que precisamos de várias camadas. É aqui que entram as vacinas, que trabalham na prevenção da doença.
Temos atualmente duas vacinas no mercado. A mais antiga é a da Sanofi, a Dengvaxia, que já está disponível há cerca de sete anos. É uma vacina que só deve ser usada em pessoas que já tiveram dengue pelo menos uma vez.
A segunda vacina é a Qdenga, que está chegando agora ao sistema de saúde. O governo brasileiro comprou quase toda a produção da empresa produtora, a Takeda: 5 milhões de doses. Como se trata de uma vacina de duas doses, esse volume será capaz de imunizar 2,5 milhões de pessoas, ou apenas 1% da população brasileira.
Além disso, como há um intervalo de três meses entre as doses, quando as pessoas terminarem de se vacinar a epidemia desse ano já terá passado. Não resolverá o problema desse ano, mas é mais uma opção em mãos.
Mas existe uma terceira vacina, essa em fase final de testes, que é a vacina do Butantã – a Butantan-DV -, que tem se mostrado muito mais eficaz que as outras duas. Trata-se de uma vacina de dose única, que é propriedade de um órgão público brasileiro (Instituto Butantan) que pode suprir o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro e que, portanto, deve causar um impacto muito positivo na resolução do problema.
Como pesquisador, sou um dos responsáveis pelos estudos da Butantan-DV. A vacina acaba de apresentar os resultados da fase 3 do estudo, e já fizemos a primeira publicação sobre o imunizante, relativa aos dois primeiros anos de acompanhamento dos voluntários vacinados. Estamos completando agora um segundo artigo, já com quase quatro anos de acompanhamento, e em julho terminaremos o acompanhamento do último voluntário.
Ao todo, serão cinco anos acompanhando 16 mil voluntários depois da vacinação. Ainda há uma série de questões regulatórias com a Anvisa, com os quais o Butantan está trabalhando, na perspectiva de conseguir a aprovação da vacina já no ano que vem.
Medicamentos
As vacinas fecham ainda mais o cerco sobre a dengue. Mas sempre haverá aqueles que não tomarão a vacina, seja porque não querem ou porque não podem, como é o caso dos imunossuprimidos. Aqui entra o terceiro elemento do tripé de combate à doença: os medicamentos.
Atualmente, não temos nenhum medicamento para o tratamento específico da dengue no mercado. Mas há pelo menos três drogas de grandes laboratórios farmacêuticos em fase final de teste e que se mostraram muito eficientes nos estudos pré-clínicos.
Esses novos medicamentos não apresentaram maiores problemas de toxicidade nos estudos iniciais. Alguns já estão sendo inclusive testados nos Estados Unidos no que chamamos de “desafio humano” – que é a injeção do vírus em voluntários (obviamente, vírus já caracterizados e não agressivos) e posterior tratamento deles dentro dos hospitais.
Então, se há uma década não tínhamos nada que pudesse fazer frente à dengue, hoje já temos no horizonte um tripé que se retroalimenta no combate à doença: controle da capacidade vetorial, vacinas e medicamentos. Por isso, sou otimista e acredito que não estamos longe de transformar a dengue em um problema menor para o sistema de saúde.
Todas essas soluções estão próximas. Contudo, elas não resolvem o problema da epidemia desse ano. Por isso, as medidas tão repetidas de combate ao mosquito devem ser mantidas e intensificadas, como a eliminação de águas de vasos de plantas, pneus, piscinas e até recipientes pequenos como tampas de garrafas, que podem se tornar possíveis criadouros.
O mosquito voa pouco: não mais que 300 ou 400 metros. Em geral, o Aedes nasce, cresce, infecta e morre entre a minha casa e a do meu vizinho, no máximo. Assim, não podemos esperar que o Estado tome conta do mosquito dentro da nossa casa: quem tem que controlar o Aedes aegypti somos nós.
*O artigo foi escrito pelo pesquisador Maurício Lacerda Nogueira, do Laboratório de Pesquisas em Virologia e professor do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias, Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), e publicado na plataforma The Conversation Brasil.
Fonte: Metrópoles