Em entrevista ao CB.Saúde — parceria do Correio com a TV Brasília —, a professora e imunologista da Universidade de Brasília (UnB) Anamélia Bocca alertou para os riscos da situação de abandono vacinal na campanha contra a covid-19. A especialista explicou, nessa quinta-feira (15/4), que tomar a primeira dose de um imunizante contra a doença, mas não retornar para a segunda aplicação pode fazer com que o novo coronavírus aprenda como funciona a resposta imune do organismo e desenvolva novos mecanismos de ataque.
Além disso, a professora destacou que, apesar do aumento dos casos entre pessoas com menos de 50 anos, é possível perceber queda das infecções em idosos com mais de 60. Anamélia abordou as supostas ocorrências, ainda em investigação, de trombose após aplicação da vacina Covishield — produzida pela empresa sueca AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford. Para a especialista, a suspensão do uso desse imunizante em alguns países não significa que ele não seja eficaz e demonstra a rigidez dos processos avaliativos e de aprovação das agências regulatórias. Confira os principais trechos da entrevista concedida à jornalista Carmen Souza:
A chegada das vacinas contra a covid-19 colocou o mundo em um novo patamar no combate à pandemia, com ritmos diferentes em cada país. Como o Brasil está nesse cenário?
Se considerarmos todos os países que começaram o processo de imunização, o Brasil não está nada bem. Vários deles fizeram trabalhos anteriores, como a reserva de doses e o investimento em pesquisa. Assim como fizemos com a vacina de Oxford/AstraZeneca, algumas nações investiram em mais de um imunizante. Obviamente, esses locais tiveram retorno maior em quantidade de vacinas, conseguindo atender um grande número da população, e começam a ver os efeitos dessa imunização. É o caso de Israel, que vacinou mais de 60% dos habitantes com as duas doses e tem percebido queda no número de pessoas infectadas. A mesma situação pode ser observada nos Estados Unidos, que, apesar de ter índices menores de pessoas vacinadas porque a população é muito grande, também estão percebendo diminuição nos casos. Esses exemplos provam que as vacinas funcionam, mas que a distribuição e o processo de aplicação demandam logística. Quem se programou melhor está mais avançado no cenário de vacinação. A Europa, por exemplo, que não tem uma logística tão boa, tem o número de doses necessárias, mas a aplicação está lenta por causa de problemas de organização.
Qual sua análise sobre a vacinação no Distrito Federal?
Acho que nós, considerando o baixo número de doses disponíveis, estamos indo muito bem. Temos uma logística muito boa de aplicação. O entrave é a quantidade de unidades em estoque. Em relação à segunda dose, o que a secretaria (de Saúde) fez, de segurar as aplicações, foi muito prudente, porque temos visto várias capitais sem vacinas para o reforço. Aqui, a pasta diminuiu o ritmo com a primeira dose, para garantir a segunda à população.
A partir de amanhã, deve começar a vacinação dos idosos com 64 e 65 anos. Até o próximo mês, conseguiremos fechar a imunização de todos os idosos com mais de 60 anos?
Não é muito minha área de estudo, mas, por algumas análises que li, até o fim deste mês e início de maio, devemos fechar o primeiro grupo prioritário e dar início ao de comorbidades.
Pensando no grupo de idosos vacinados, podemos inferir que houve impacto no sistema de saúde com relação a internações e mortes?
Temos visto no DF duas situações distintas: diminuição do número de pessoas acima de 60 anos internadas com evolução para óbito, mas em comparação com os outros grupos. Com as novas variantes, pessoas abaixo de 50 anos têm se infectado mais e apresentado formas mais graves da doença, ocupando em maior quantidade os hospitais. O fato de haver mais casos neste grupo pode estar mascarando o número de idosos que têm se recuperado, mas conseguimos ver, em uma primeira análise, diminuição das pessoas acima de 60 anos contaminadas com a covid-19.
O Ministério da Saúde calcula que 1,5 milhão de pessoas não voltaram para receber a segunda dose da vacina. De que forma isso pode estar relacionado com o surgimento de mutações do vírus?
A vacina não nos blinda da infecção. Muitas pessoas pensam “Agora que estou vacinado, não preciso mais usar máscara nem continuar com os outros cuidados”. Isso não é verdade. A vacinação melhora a resposta ao vírus. Uma pessoa não imunizada terá resposta lenta do sistema imune, o vírus ganha espaço e se prolifera. A primeira dose da vacina já oferece melhora imunológica, com geração de células de memória. Com a segunda dose, a resposta será ótima. Ao entrar em contato, a partir da reação (do reforço da vacina), o vírus não terá tempo de se proliferar e causar a doença, porque o sistema imune age para eliminá-lo rapidamente. Com a resposta intermediária gerada apenas com a primeira dose, o vírus consegue sobreviver e aprende, com a resposta imune, a gerar novas variantes. Se as pessoas não tomarem as duas doses e, portanto, não tiverem resposta adequada no organismo, há possibilidade de favorecer as mutações do vírus, gerando novas variantes — mais graves e com proliferação acentuada em nosso organismo.
Com essas variações, mesmo uma pessoa vacinada com as duas doses agora pode não ficar protegida no futuro?
Qualquer pessoa vacinada pode se infectar. Vai depender, porém, das células de memória ativas desempenharem boa resposta no sistema imunológico. Quando o vírus sofre mutação, não há alteração completa da estrutura dele. Não passa a existir um novo micro-organismo. A resposta das duas doses vai reconhecê-lo parcialmente, como acontece com a (vacina contra a) gripe, em que somos imunizados contra as variantes do último ano. Contra as mutações que eventualmente aparecerem, teremos uma resposta parcial, que permitirá a eliminação do vírus do organismo. Se deixarmos que as variantes circulem com rapidez e aumentem a velocidade de surgimento, é possível que a vacina fique com cada vez menos eficiência. Creio que teremos de adaptar os imunizantes contra a covid-19 a cada ano, como acontece com as vacinas contra a gripe.
Quem tomou a primeira dose e perdeu o prazo da segunda deve fazer o quê?
Deve voltar para a segunda aplicação, não há problema. Inclusive, no caso da CoronaVac, existem estudos preliminares mostrando que, até 28 dias depois da primeira dose, os resultados podem ser melhores do que dentro do prazo de três semanas.
Fonte: Correio Braziliense