Das primeiras pílulas para tratar a covid-19 à exploração do interior marciano, 2021 foi um ano de progressos notáveis para a ciência. Como em toda penúltima edição de dezembro, uma das mais importantes publicações da área, a revista Science, elegeu 10 destaques em diversos campos, contemplando desde a extração de DNA milenar do solo à atuação da inteligência artificial na previsão de estruturas proteicas.
Grandes feitos, porém, somaram-se a decepções, como o texto final da Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU, a COP26, um dos destaques negativos do ano, segundo a Science. A criticada aprovação, pela Food and Drug Administration (FDA), de um medicamento para Alzheimer que, na verdade, não muda o curso da doença foi outra bola fora, de acordo com a publicação.
Em uma reportagem especial da edição, a Science também comenta o sucesso das vacinas para covid-19, destacando, porém, a necessidade de se aprimorar os imunizantes, que parecem perder força ante a variantes que surgiram e que, provavelmente, surgirão. O texto também lamenta o acesso desigual às doses. “Sejam quais forem as vacinas que o mundo desenvolver a seguir, também teremos que encontrar maneiras para usá-las melhor. Até agora nesta pandemia, tem sido o vírus, não a humanidade, que fez a maior parte da evolução.
Os escolhidos
Decifrador de proteínas
Sem o conhecimento da “anatomia” das proteínas, seria impossível desenvolver as vacinas da covid. Para encontrar o alvo dos imunizantes, cientistas precisaram, antes, conhecer detalhadamente o processo pelo qual a proteína viral spike consegue interagir com as células humanas e, assim, passar a infectá-las. Graças à inteligência artificial, bancos de dados dessas estruturas-base da construção genética podem ser decifrados minuciosamente em tempo e número recordes. A revista destaca o software AlphaFold2, desenvolvido pela DeepMind do Google, que realiza previsões da estrutura de proteínas humanas e de outros organismos com uma acurácia jamais obtida. “O AlphaFold2 contribui para o nosso conhecimento e compreensão dos sistemas vivos, com todas as oportunidades para a humanidade que isso abrirá”, comenta Dame Janet Thorton, cientista do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL).
Tesouro em sedimentos
No piso de cavernas pré-históricas, cientistas descobriram um verdadeiro tesouro: uma fonte de DNA “flutuante”, espalhada por seres vivos no ar, na água e no solo e que pode se manter intacta por milhares de anos. Pela primeira vez, em 2021, cientistas utilizaram esse tipo de informação genética para reconstituir a identidade de neandertais e Homo sapiens que viveram em cavernas da Europa. No sítio arqueológico das Estátuas, na Espanha, essa tecnologia foi essencial para fornecer informações sobre humanos que viveram lá, entre 113 mil e 80 mil anos atrás, por exemplo. “O início da análise de DNA nuclear de sedimentos estende maciçamente o leque de opções para desvendar a história evolutiva dos humanos antigos”, afirma Matthias Meyer, do Instituto de Antropologia Evolutiva Max Planck em Leipzig.
Ponto de ignição
Em agosto, pesquisadores da National Ignition Facility (NIF) dos EUA produziram uma reação de fusão que chegou perto de atingir a ignição — o ponto em que se gera pelo menos tanta energia quanto seus lasers gastam no processo. A fusão, que alimenta o Sol e outras estrelas, é vista, há tempos, como uma solução para os problemas de energia da Terra. Mas alcançar as pressões e as temperaturas necessárias — 10 vezes mais que o núcleo solar — é difícil. Os cientistas do NIF usaram um pulso do laser de mais alta energia do mundo para comprimir uma cápsula do tamanho de um grão de pimenta dos isótopos de hidrogênio deutério e trítio. O método gerou 1,35 megajoules, perto dos 1,9 megajoules empregados pelo laser, e rendeu vários prêmios e reconhecimentos à equipe neste ano.
Pílulas para covid
Se as vacinas foram o grande destaque na luta contra a covid, as pílulas orais usadas, no início da infecção, em pacientes mais vulneráveis podem revolucionar o tratamento da doença. Duas companhias — Pfizer e Merck — obtiveram resultados positivos na redução de risco de hospitalização e morte, chegando a uma eficácia de 90%. Na terça-feira, a Pfizer anunciou o resultado final do ensaio clínico de fase 2 de seu antiviral. Segundo a companhia, ele é eficaz contra todas as variantes. “Ambos medicamentos demonstram que, com investimento apropriado, o desenvolvimento de antivirais de ação direta sob medida para o Sars-CoV-2 era eminentemente viável e, em última análise, provou ser uma estratégia muito mais bem-sucedida do que redirecionar outros medicamentos com efeitos antivirais questionáveis”, redita Stephen Griffin, da Universidade de Leeds.
Aposta em psicodélicos
Um ensaio mostrou que 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA), popularmente chamada ecstasy, reduziu significativamente os sintomas em pacientes com transtorno de estresse pós-traumático. O estudo, publicado na revista Nature Medicine, em maio, testou uma combinação de psicoterapia e MDMA, que pode criar uma sensação de bem-estar e empatia, ajudando as pessoas a processarem experiências traumáticas. Os resultados geraram entusiasmo, mas também cautela. A pesquisa psicodélica cresce em laboratórios acadêmicos e de empresas privadas para o tratamento de condições como depressão, ansiedade e dependência química. Em novembro, a empresa de saúde mental baseada em Londres COMPASS Pathways anunciou resultados positivos de um teste da psilocibina, a substância dos chamados cogumelos mágicos, com 233 participantes diagnosticados com depressão resistente a tratamento.
Anticorpos artificiais
Os anticorpos produzidos em laboratório, chamados monoclonais, já se mostraram revolucionários no tratamento de cânceres e doenças autoimunes. Agora, cientistas provaram sua eficácia contra enfermidades infecciosas, incluindo a covid-19. Os monoclonais para combater o Sars-CoV-2 apresentaram resultados promissores em ensaios clínicos em 2020, e, no fim deste ano, a agência reguladora dos EUA concedeu autorização de uso de emergência a três deles para tratar e/ou prevenir a covid. Uma desvantagem ainda é o preço alto demais para tornar o tratamento acessível, uma preocupação do painel de especialistas da OMS, que recomenda os anticorpos monoclonais como terapia anticovid. “O painel reconheceu várias implicações de custos associadas a esse tratamento, que podem tornar o acesso a países de baixa e média renda um desafio”, destacou um editorial da revista The British Medical Journal.
Forças desconhecidas
Em abril, cientistas do Laboratório Nacional de Argonne e do Laboratório Nacional de Aceleração Fermi, ambos nos EUA, publicaram quatro artigos apontando para a existência de partículas ou forças ainda não descobertas. Essa nova física pode ajudar a explicar mistérios científicos antigos. “Podem ter implicações importantes para futuros experimentos de física de partículas e levar a uma compreensão mais forte de como o universo funciona”, disse Ran Hong, pesquisador em Argonne. O experimento, Muon g-2, produziu um resultado diferente do valor previsto pelo Modelo Padrão, a melhor descrição da composição e do comportamento do universo. A diferença, na ordem de algumas partes por milhão, sugere a existência de interações desconhecidas entre o múon e o campo magnético que poderiam envolver novas partículas ou forças.
Edição bem-sucedida
Pesquisadores da Intellia Therapeutics e da Regeneron Pharmaceuticals demonstraram, pela primeira vez, que a ferramenta de edição genética Crispr-Cas9 pode ser segura e efetiva. No caso, eles tiveram como foco uma proteína produzida de forma errada no fígado de pacientes da condição letal amiloidose transtirretina. Com um único tratamento, os cientistas conseguiram, em seis participantes, reduzir em 87% os níveis da TTR. A esperança é de que o tratamento único funcione como medicamento, que deve ser injetado a cada três semanas. “É um momento importante para o campo”, comentou, no site da revista Nature, Daniel Anderson, engenheiro biomédico do Massachusetts Institute of Technology (MIT) em Cambridge. “É uma nova era da medicina.”
Modelos embrionários
Em março, pesquisadores da Academia Austríaca de Ciências anunciaram uma tecnologia que, a partir de células-tronco, gerou os primeiros embriões humanos em estágio inicial numa placa de Petri. O objetivo da equipe de Nicolas Rivron era chegar a um modelo fiel da formação inicial do feto e, assim, entender o comportamento embrionário em detalhes. Oito meses depois, o grupo anunciou, na Nature, que duas moléculas dessas estruturas se mostraram promissoras para o desenvolvimento de anticoncepcionais e procedimentos de fertilização in vitro aprimorados. Rovin Lovell-Badge, do Instituto Francis Crick, no Reino Unido, observa que é preciso ter cautela quanto aos resultados. “Serão necessárias comparações detalhadas e, de preferência, com células cultivadas em estágios além de 14 dias, quando a complexidade embrionária começa a se desenvolver.”
Por dentro de Marte
Graças à missão InSight, a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa) conseguiu detalhar o interior de Marte, fornecendo informações sobre a composição e o tamanho das camadas da estrutura interna do planeta (núcleo, manto e crosta). A descoberta rendeu três artigos publicados na Science. O vizinho é o segundo planeta, depois da Terra, a ter a estrutura revelada. A sonda mostrou que o raio do núcleo marciano é aproximadamente a metade do tamanho da terrestre — ou seja, maior, mas menos denso do que se imaginava. “As descobertas da InSight representam o culminar de todo o trabalho da última década”, disse, em um comunicado de imprensa, o principal investigador da missão, Bruce Banerdt, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa.
Fonte: Correio Braziliense