Desnutrida, com cicatrizes no rosto, cabelo raspado e sem sobrancelhas, Nora* olha exausta para a câmera. No colo, está seu bebê, de quem ela estava separada à força até recentemente.


A foto, tirada após sua libertação, viralizou nas redes sociais e tornou-se um símbolo de um trauma que abalou muitos sírios: mulheres do grupo religioso alauita estão sendo alvo de sequestradores brutais. Como Nora, que após ser solta apagou seus rastros da melhor forma possível e deixou o país.
Ela ficou presa em um porão por quase um mês, onde diz ter sofrido abusos físicos e psicológicos. A jovem mãe estava viajando com seu filho de onze meses perto da cidade costeira de Jabala, a caminho de um centro de distribuição de ajuda humanitária, quando foi parada por homens mascarados em um veículo com placas de Idlib.
Eles perguntaram de onde ela era. Quando respondeu que era alauita, foi brutalmente arrastada para dentro do carro. Nora diz que os homens também lhe vendaram os olhos durante o sequestro.
“Era xingada todos os dias e espancada com tanta violência que perdi a consciência várias vezes”, disse ela em entrevista à DW. Durante o período no cativeiro, seu bebê foi retirado dela e pediram que assinasse um documento – um contrato de casamento. “Eu recusei. Sou casada. Depois disso, fui tratada de forma ainda mais brutal.”
Fotos dos abusos foram enviadas para sua família como forma de pressão. Nora foi depois libertada em troca de um resgate caro, segundo ela. Hoje, ela vive no exterior em segurança e está recebendo tratamento médico para graves problemas ginecológicos.
Humilhação sistemática
A história de Nora não é um caso isolado. A agência de notícias Reuters e vários meios de comunicação árabes e internacionais também relataram sequestros e chantagens contra mulheres alauítas.
Desde o início do ano, mais de 40 mulheres foram dadas como desaparecidas na Síria, afirma o ativista de direitos humanos Bassel Younus à DW. Da Suécia, ele documenta sistematicamente as violações de direitos humanos com a ajuda de uma rede na Síria. “A esmagadora maioria das pessoas sequestradas pertence – como Nora – à comunidade alauita”, disse.
Isso significa que mulheres da minoria religiosa à qual pertence o ditador deposto Bashar al-Assad, e que é considerada “apóstata” pelos radicais islâmicos, estão sendo alvo de ataques. Relatos de ataques violentos contra alauítas como supostos “apoiadores de Assad” por forças sunitas radicais aumentaram significativamente desde a queda de Assad.
Nos últimos meses, em particular, os alauitas na Síria estão sob pressão considerável, muitas vezes com risco de morte. Em março, houve ataques sangrentos contra alauitas que deixaram centenas de mortos.
Vários meios de comunicação relatam que ao menos uma parte dos grupos violentos tem conexões com o Ministério do Interior sírio. O presidente interino Ahmed al-Sharaa criou uma comissão de inquérito, mas suas conclusões ainda não foram divulgadas. Entre as minorias da Síria, incluindo os cristãos, há um medo crescente da violência, como muitos alauitas já experimentam.
As mulheres alauitas não são vítimas aleatórias de sequestro, enfatiza o ativista de direitos humanos Younus. “Elas estão sendo transformadas em símbolos da subjugação de toda uma comunidade.” Nora lembra ter sido abusada verbalmente enquanto estava em cativeiro: “Eles nos chamavam de porcos e de kuffar – infiéis.”
A ONU também já recebeu relatos de casos de sequestro. A Comissão Independente de Inquérito da ONU sobre a Síria disse à DW que em breve apresentaria um relatório sobre os casos documentados até o momento. No final de junho, a comissão confirmou pelo menos seis sequestros de mulheres alauítas na Síria.
O chefe da comissão, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, também falou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre “indícios confiáveis” de outros casos. As autoridades do governo de transição sírio iniciaram investigações sobre alguns desses casos, mas o Ministério do Interior sírio recusou-se a responder a perguntas da DW sobre o assunto.
Exigências de dinheiro a partir do exterior
Ao longo de semanas de pesquisa, a DW conversou com mais de uma dúzia de famílias e mulheres afetadas. Ativistas de direitos humanos e organizações de monitoramento forneceram informações adicionais. Mas muitos parentes evitam a exposição pública – por medo, vergonha ou incerteza.
Sami*, um jovem de uma aldeia perto da cidade de Tartus, no oeste da Síria, é um dos poucos que se dispõe a falar com a mídia. Ele relata que sua irmã Iman*, de 28 anos, desapareceu sem deixar vestígios depois de viajar para a cidade. Pouco tempo depois, a família recebeu uma ligação de um número estrangeiro. Uma voz anônima ameaçou: “Esqueçam Iman. Ela nunca mais voltará.”
Sami relatou o caso à polícia, mas inicialmente eles minimizaram o assunto, alegando que, na maioria desses casos, as mulheres envolvidas na verdade haviam fugido com amantes secretos.
Mas, dias depois, os sequestradores entraram em contato com a família novamente, diz Sami, desta vez com uma exigência específica de valor de resgate, na casa dos cinco dígitos. A família pediu o dinheiro emprestado e o transferiu para a Turquia usando o chamado sistema hawala, que torna a transparência e a rastreabilidade muito difíceis.
Documentos analisados pela DW mostram que os destinatários eram sírios com status de refugiado na Turquia. A DW também conseguiu verificar um pagamento semelhante em outro caso. Para Sami, o pagamento em dinheiro não trouxe resultado. Após a transferência, o contato foi perdido. Ainda não há vestígios de Iman.
Paralelo com mulheres yazidis sob o “EI”
Maya*, 21, também da região de Tartus, foi sequestrada em março junto com sua irmã menor de idade. A jovem relata que ambas estavam a caminho de fazer compras quando foram paradas por homens armados e mascarados. “Eles nos perguntaram se éramos alauitas ou sunitas. Quando respondemos ‘alauítas’, nos arrastaram para dentro de um ônibus sem placa”, conta ela à DW.
Segundo o relato de Maya, as irmãs foram vendadas e conduzidas por horas por um terreno desconhecido, trajeto durante o qual foram insultadas como “infieis” e “fuloul”, termo que se refere a “remanescentes” do regime de Assad. Os sequestradores as acusaram de serem parcialmente responsáveis pela morte de centenas de combatentes associados ao atual governo de transição islâmico.
Maya e sua irmã foram mantidas em cativeiro em um porão. “Tínhamos medo de que elas fossem nos vender.” Reportagens já especulam se as mulheres alauitas poderiam enfrentar um destino semelhante ao das mulheres yazidis, escravizadas pelo grupo terrorista “Estado Islâmico” (EI) em 2014.
Afinal, o governo de transição sírio também integrou grupos islâmicos radicais cujos comandantes foram ligados ao tráfico de pessoas no passado, como o general Ahmad Ihsan Fayyad al-Hayes, que os EUA suspeitam ter estado envolvido no tráfico de mulheres yazidis escravizadas.
Bassam Alahmad, presidente da organização de direitos humanos Sírios pela Verdade e Justiça, diz à DW: “Não temos nenhuma evidência até o momento de que mulheres alauitas tenham sido sistematicamente escravizadas, como as mulheres yazidis naquela época.”
No entanto, ele afirma ser preocupante que a afiliação religiosa esteja tendo um papel cada vez mais crucial em sequestros e assassinatos. “As mulheres alauitas estão agora sendo alvo por causa de sua religião, e isso é semelhante ao que aconteceu com as mulheres yazidis.”
Além disso, segundo Alahmad, a população alauita está sendo responsabilizada coletivamente pelos crimes do regime de Assad. “Esse é o cerne do problema.”
Maya e sua irmã acabaram sendo libertadas, e o motivo disso ter acontecido ainda não está claro. Após dois meses, elas foram entregues à família – com véu, assustadas e perturbadas. Elas sobreviveram. Outras mulheres continuam desaparecidas.
*Nomes alterados pela DW para proteger as entrevistadas.